sexta-feira, 27 de julho de 2012

O tempo em dois tempos




O tempo em dois tempos


Tempo é o tecido da vida.
Antonio Cândido, aos 94.

Primeiro movimento
Sobre a terra Maria jogou as sementes. Uma terra de soluços, pedregulhos, torrões de argila. As gotas de chuva e rega se enfiam no solo árido; chega o soro às plantas. O tempo passa, as sementes se rasgam ao sol e desabrocham num verde clarinho de folha recém nascida. Nascem as folhas neste berço, na terra seca. E no tempo tomam forma, tomam força e se erguem. Pequenas catedrais.

O alimento estaria garantido não fosse a chuva, o granizo, não fosse a neve nunca esperada, não fosse o frio.

Maria decidiu partir. Sem hóstia, sem alimento, a pressa, a pressa, a fuga. 
Daria tempo de calçar os sapatos?



Segundo movimento
Cidade grande.
Tempo é o que ela perde nos engarrafamentos, nas filas. O tempo come sua sede de estar com os outros, de ver brotar as sementes. 



Nas águas do tempo, Maria é hoje, bolha em ebulição.




Ah, desfrutar a calma do tempo...
Houve tempo em que havia calma, Maria. 

sábado, 21 de julho de 2012

Cadete




A excitação transbordava em seu corpo, ia rever o pai. Mal percebeu a mãe lhe entregando à aeromoça desfiando uma infinidade de conselhos e lembretes. A identificação os corredores o cheiro da aeronave as poltronas as janelinhas os motores as hélices as aeromoças os uniformes as bandejinhas os maleiros os comandantes os autofalantes as vozes as luzes a velocidade o frio na barriga o impulso o voo as nuvens o chão de formiguinha as nuvens o sol o azul os carrinhos as bandejas  os refrigerantes os lanchinhos os sorrisos a calma as sacudidelas o cinto a poltrona a descida o frio na barriga o solavanco a corrida o barulho o pouso ahhh.  O ar finalmente chega aos pulmões...
Conforme crescia foi jogador de futebol, biólogo, médico, aventureiro.
No fundo, desde a primeira viagem, voar virou fascinação. Para ser piloto estudou, ralou dias e noites, deixou programas e baladas, isolou-se dos amigos, ansiedade, estudou, estudou, estudou, entrou na academia da força aérea  e ... ralou.
Ainda mais.
Menos de 3 minutos fazer a cama, roupas brancas lavar passar, varrer quarto, lavar banheiro, disciplina, obedecer sem argumentar, a hierarquia, aulas de pé, resolver problemas, estudar, cálculos, medidas, profissionalismo, obedecer, liderança, estudar, trabalhar em equipe, obstáculos, o peso, a trave, a cesta, a bola, a rede, a raia, as cordas, o tempo, a lealdade, o dever, a honra, correr, nadar, saltar, dormir ao relento, a coragem, bandeira, hinos, o civismo, avaliação, erro de um, punição para todos, um milhão de flexões, proibido sair, cozinha, acordar no meio da noite, prontidão, flexões, ética, marchar, obedecer, botina brilhando, grito de guerra, patriotismo, ensaio, ensaio, ensaio. Sentido! Espadim. 



Nada de voar.
Tudo é ensaio.
Longo é o caminho para alcançar o sonho de Ícaro.


Fotos 1 e 3 Internet
Fotos 2 e 4 Remo A. Pierri
Pirassununga SP / Espadim 06/06/2012

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Highraff e Amsterdã


Em espiral eleva-se a grua verde abacate. O rapaz espera por este momento desde que se viu a pintar os primeiros muros proibidos. Um dia teria a sorte a chance a oportunidade a oferta de pintar a parede de um prédio. Inteira. Só ele e seus sprays. Só ele e sua alma lançando-se em formas que brotam de seus braços impulsionados pelo mestre, como estilingues. Nunca sabe o que vai pintar. A exigência única é colocar-se a serviço. E ao lançar o primeiro jato -geralmente uma linha curva- outras se seguem, abrindo caminho, pedindo continuidade. As cores buscam passagem, querem dar-se a conhecer. Rodopiam em círculos gigantes que escondem uma miríade de pequenos outros. As madrugadas iluminadas pelo grande holofote sopram-lhe as pinceladas, o vento noturno trabalha em sintonia. E a superfície triste de cinza, cimento e concreto vai desvelando o sol e a roda da vida, os polígonos crescem em três dimensões escapando da parede; verdes, azuis e rosas invadem a cidade colorindo a rua e seus passantes.
Na boca do artista, a saliva tem gosto de alegria. A alegria expande seu peito e alarga o seu coração.


fotos de highraff fisgadas do facebook pelo Remo

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Minha mãe e A louca de Albano

minha mãe era uma paineira


- Mãe, recita a Louca de Albano?
- Ah, de novo?
- É, eu já tô quase decorando, falta só o finalzinho...Vai, faz favor!
O som da máquina de costura dava o ritmo da poesia; o corpo da mãe balançava para frente e para trás. Os pés apoiados no estribo da máquina eram tudo o que a menina via do ângulo em que estava, sentada no tapete, brincando com suas bonecas e ouvindo, maravilhada, a trágica história. Repetia baixinho as palavras declamadas pela mãe.


" - Anda cá, meu filho, escuta, és amigo de tua mãe?
   - Oh, minha mãe, que pergunta!
   - Basta, meu filho, pois bem. Vai ver a velha Vicenza, o amor que seu filho lhe tem. Faz vinte anos que teu pai morreu a golpes deste ferro por meu mal e que devias vingá-lo, fiz uma jura fatal.
   - Uma jura, mãe santíssima! Oh, minha mãe, que jurou?
   - Jurei que com este ferro que ferrugem se tornou, tu, meu filho, matarias, este que a teu pai matou. Matas?
   - Mato, aqui o juro.
   - Matas? Seja quem for? Ainda que a vingança te roube ao peito um amor?
   - Ainda assim.
   - É Ricardo, o matador.
   - Ricardo, pai de Maria? Oh, minha mãe, perdoai...
   - Filho ingrato! Pela amante o pai esquece. Vai. Cumpre a jura ou sê maldito se tu não vingas teu pai.
Nesta noite, tinto em sangue, com os cabelos pelo ar, o assassino de Ricardo foi aos pés da mãe lançar, o ferro com que jurara o pai da morte vingar. Sorria a velha contente abraçando o vingador quando, súbito, aparece, de Albano a cândida flor:
   - Paulo, meu Paulo, vingança! Perdi meu pai, não o vês por estas lágrimas sentidas que aqui derramo a teus pés?..."
Lalalalalalalalalalalala....


- Ah, mãe, como é que acaba? Você sempre pára neste pedaço...
- Não sei, já te disse, guria, não consigo me lembrar...Só sei que a Maria fica louca quando vê que o namorado tinha matado o pai dela.
- É por isto que chama A Louca de Albano, né?
- É.
- Já tinha entendido...mas eu queria tanto saber o final...
- Vá, vá brincar. Deixa eu acabar estes enxovaizinhos de uma vez, preciso entregar tudo amanhã pra Sinhazinha.
- Matas? Matas, seja quem for? Mato, aquiojuro! - repetia a menina encantada com o som das palavras, com a trama que formavam. Neste mesmo ritmo, seguia embalando as bonecas. Estas não entendiam nada dos caminhos da vingança; a menina tampouco. O mágico era tentar repetir junto com mãe, sem perder o ritmo, cada frase, cada palavra e, a cada dia, entender um pouquinho melhor o sentido da história.




imagens da internet - texto publicado no meu livro O Flamboyant, ed Schoba, 2010.





sexta-feira, 29 de junho de 2012

São Pedro, o pato e a lua


O sol já tinha sumido e, do galho alto da árvore, o pato vislumbrava a lua ensaiando para entrar em cena. Ele também queria festa. Embaixo do flamboyant enfeitado com bandeirinhas, a mesa de doces e a cadeira do sanfoneiro. Foi o homem chegar e esticar o fole da sanfona que o pato se pintou de prata e começou a dançar...


                                         O dançarino da lua - óleo de Manuela Baptista



Erik

Parou no Viveiro dos Pássaros e não deu palavra. Estava muito ocupado.
Na volta, sentou-se à mesa...

desenhos de Erik aos 9 anos

Passarinho cantou
De dentro de uma gaiola
Cantaria melhor 
Se fosse do lado de fora...

Hoje ele é moço e é músico.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Papeando com o carteiro




Outro dia, lá no parque, conheci o seu Marconi. Que figura, olha que prosa, o homem fala rimando, vou dividir com vocês...


O seu Antonio me espera sentadinho no degrau. Tão sozinho, pouco fala, me dá um sorriso amistoso, gosto dele, ele é legal! Depois vem dona Jobelina, aquela que varre o quintal. Arde sempre um comentário com a boca cheia de riso uns safados estes políticos, Lula e Maluf, que que é isto?Onde a gente vai parar? No fundo tem esperança que as coisas vão melhorar.
Para o 303, apenas uma revista, dona Rosa, uma viúva, é boa pra mim, é bacana. Para o 125 tem sempre um maço gordo de contas, que gente cheia da grana! O 67 tem carta de envelope perfumado, só pode ser pro roqueiro de cabelo arrepiado. O 25 tem conta sempre de banco estrangeiro, é o seu Breugurten, o careca, que fala muito engraçado. 
Vou entregando envelopes, caixinhas, coisas pequenas: Lembro o dia que eu passava na Rua do Lava-pés e dei ao seu Eduardo, o envelope vermelho. O homem abriu depressa e quase teve um chilique: tinha sido contemplado com o primeiro lugar no concurso literário para o qual nem quis entrar. A mulher que insistiu, me contou com alegria, agora ia viajar, podia rever a filha.
Gosto da gata do Nelson, no 486, que toma sol na floreira. Sempre faz uma firula, deve ser namoradeira. Bato papo com seu Ângelo, o que adora futebol. Toma conta da netinha pra filha ir trabalhar. O Corinthians ganhou ontem, mesmo só tendo empatado. Vai Colintias diz Laurinha, só dois anos, conquistada!
Os cachorros do 1005, aqueles de cara amassada, que estão sempre dormindo, abrem uns olhos ladinos quando me escutam chegar, botam a pata na cara, continuam a descansar. 
Os do 530 gostam de me lamber, eu deixo, claro que eu deixo, que mal isto há de fazer? O do 1647 é feio e mal-humorado, se chama Miséria, o coitado. Senta, Miséria! Entra, Miséria! Passa, Miséria!!
Mas triste foi o que veio da nora do seu José, um telegrama curtinho, duas únicas palavras, Anita morreu. O velho caiu num choro, eu tive de lhe ajudar, levar pra dentro, dar água, precisei lhe acalmar: era a irmã com quem ele há anos tinha brigado, nunca mais tinham falado, foi por causa de ciúme, ciumeira, coisa boba. Que estúpido! dizia ele, que besteira a gente faz, agora ela foi embora, nunca mais vou lhe abraçar! Seu Marconi, se eu pudesse, ah...