sexta-feira, 27 de maio de 2011

Respiro no Choro




Joel atravessou a cidade toda para pegar o instrumento no conserto.
À sua frente corria a paisagem em finas linhas horizontais, interrompida a intervalos pela visão da mulher tricotando um cachecol listrado em pleno verão. Pensou no dia em que sofrera o infarto. Falta de ar e um cansaço extremo o levaram até o Samaritano. Entrou no hospital para um exame e não pode sair. Elisa tricotava cachecóis para aliviar a ansiedade. Até que saíssem de lá, uma semana depois, ele remendado com quatro pontes de safena. Agora, seu peito estava costurado, suas pernas tinham cicatrizes. Porém, seu coração batia com muito mais satisfação especialmente quando abraçava o bandolim e lhe arrancava choros. Chorosos ou risonhos. A vida não é a mesma depois de pontes de safena.
Senta - se ao seu lado um senhor de respeitáveis cabelos grisalhos, ele também carregando um estojo musical, dos grandes.
-  O que o senhor tem aí? –  o homem pergunta.
Joel ergue o estojo como se fosse abri-lo mas desconfia:
-  O senhor faz o quê? É músico?
- Sou luthier. Conserto e afino instrumentos de corda. Basicamente violoncelos, violas, violinos. Este é do Fulano de Tal, que toca na Filarmônica de São Paulo; estou levando para ele, para o concerto de hoje à noite.
- Que coincidência, acabo de pegar meu bandolim no conserto, levo para um luthier que tem uma oficina lá na Saúde.
- Não conheço. - E aparando o bandolim, com respeito, dá o veredicto: - Belo instrumento! Mas ficaria melhor se o senhor o libertasse.
- Perdão?
A mulher que tricotava, o rapaz com fone de ouvido, o homem que lia jornal, todos os passageiros levantaram a cabeça, esticaram os ouvidos.
- Se o senhor o liberasse o som ia sair mais limpo, mais pungente. Veja, ele está revestido de poliuretano e isto impede a madeira de respirar. Já o do Fulano, como o senhor pode ver - e abre o estojo do violoncelo deixando ver a lateral do instrumento recoberta com um verniz muito diferente do do acabamento do bandolim.  – Vê? É verniz orgânico, a madeira respira. Com o poliuretano o som fica aprisionado; nos instrumentos da orquestra usamos verniz orgânico.
- Ah...
Joel sabia perfeitamente o que era não poder respirar livremente, sabia do cansaço que isto produzia, sabia da alegria que passou a sentir quando recuperou a capacidade plena dos pulmões.
- Bom,  preciso descer, chegou meu ponto, fique com o meu cartão, se um dia ...


 Chegando em casa, experimentou a velha alegria, o calor no peito aconchegado pela madeira. A melodia se espalhou pela sala. Os primeiros momentos foram de puro enlevo. Buscou pelos acordes mais variados pondo à prova o instrumento, pareceu-lhe perfeito. Tinha de sair para o trabalho, clientes o esperavam, o bandolim ficaria para uma outra hora.


Quando voltou à noite, ligou a TV. Anunciavam o nome do Fulano de Tal, da Orquestra Sinfônica para a execução de um solo de violoncelo. Mas que coisa! Nunca tinha ouvido falar do Fulano e agora duas vezes no mesmo dia. Esse Agripino deve ser bom. Escutou o resto das notícias, colocou no forno o prato de massa e foi pegar o bandolim que deixara encostado no canto da parede; tinha tempo, a mulher fazia serão no trabalho. Pela primeira vez o som lhe pareceu meio abafado. Bobagem, deve ser impressão depois da conversa com o Agripino.

 Elisa chega agitada, aconteceu um assalto na escola, teve de tratar com a polícia, com pais histéricos, com crianças assustadas e professoras apavoradas. E não perdeu o controle. Ele pousa o bandolim na quina da estante e a beija, carinhoso, admirando-a. Como sempre. Ou melhor, como sempre depois do infarto; passou a vê-la com outros olhos depois do infarto. A vida não é a mesma depois de pontes de safena, já disse isso hoje. É sua vez de contar as fainas do dia, do Agripino Simões, do Fulano de Tal. O telefone toca. Elisa, empurra com o corpo a cadeira, passa por cima da perna dele, desviando da estante, estende o braço e alcança o aparelho:
- Alô? Sim, é ela. Como depor amanhã?  O que mais o senhor precisa saber?
- Ah, meudeus, Joel, o bandolim! Segura, vai cair, xiii, nossa, tá escorregando, pega, pega, ali...
Não deu tempo; ele estava na cozinha pegando a massa para os dois; do chão, ele o agarrou pelo corpo e o abraçou. Manteve-o contra o peito por uns segundos como se fosse um filho.
Ela - o telefone balançando no fio - pede para ver se quebrou, examina-o com cuidado. Afaga o bandolim no colo, balançando o corpo para frente e para trás, de luto.  Deixa que o pinho receba sobre a madeira impermeável o choro que conteve ao longo de todo o dia, de todos esses meses estafantes, hospital, problemas de filhos, mãe doente. Em soluços, deságua:
-  Olha, Joel, tem um racho aqui, desculpa, desculpa, desculpa...
- Ei, Elisa, pára! 
Abraça-a.
- Não tem problema, não tem problema, mulher! Amanhã levo no seu Agripino. Ele conserta o racho e ainda peço para ele libertar o bandolim, deixá-lo respirar.

O anjo sabia que todo mundo estava muito precisado de respirar naquela casa.    


fotos de Remo A. Pierri
                                                                               

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Como se chama isto?

1.
O elevador parou no quinto andar. O garoto abriu a porta para entrar, a mulher saiu, de costas, carregando nas mãos uma caixa; duas outras aguardavam no chão. Dos ombros pendiam a bolsa e uma sacola. Na boca, um chaveiro. O cachorro, arrastando a guia, se enroscou numa das caixas. O celular da mulher tocou. Muitas vezes até que ela conseguisse apoiar a caixa no chão do hall de serviço e encontrá-lo dentro da bolsa. Atendeu, ouviu meia dúzia de palavras e disse: Tá bom. Foi desabando até sentar-se no chão em frente à porta da cozinha. Começou a chorar. Convulsivamente. O garoto parado no hall, segurando a porta do elevador, entrou dentro dele deixando um dos pés travando a porta; pegou uma caixa, pôs para fora, pegou a outra, fez o mesmo. Ajeitou as três ao lado da parede, soltou o elevador. Sentou-se junto à mulher e fez o cachorro deitar-se entre os dois. Ficou ali, em silêncio, por vários minutos. Perdeu a carona para o jogo.


2. 
A mulher índia anda pela estrada de terra até a cidade para pegar a carteira de trabalho para o filho que acabou de arrumar um emprego. No caminho, preso numa corda amarrada ao tronco de uma árvore, vê um corpo balançando  Inspira um ar que pára nas narinas e deixa o peito em suspenso. Seus olhos reconhecem a calça que balança. Nem ousa olhar para cima.


3.
Trabalhou feito uma moura, achou as palavras certas para dizer às meninas, deu a cada uma a tarefa que esperavam - elas saíram pulando pelo corredor com seus papeizinhos nas mãos - descobriu um jeito novo de ir para casa sem pegar trânsito, inventou novos usos para um pedaço de abóbora e folhas de alecrim, fez um almoço delicioso; no meio dos muitos afazeres da tarde, achou um tempo para andar no bosque e uma borboleta pousou em sua mão, o marido lhe deu um beijo inesperado na hora do jantar e o filme que escolheram para ver no vídeo os fez rir e chorar.


sexta-feira, 13 de maio de 2011

Por-do-sol em Guaecá

Puxa de trás da geladeira a cadeira de alumínio e caminha rápido rumo à praia. Não tardará a hora. O céu já dá mostras de que o espetáculo vai começar. Sobre a areia morna, arma a cadeira e toma assento. Todas as tardes ela faz o ritual; não o perde por nada.
Lentamente, descortina-se a tela de 360°. 
O sol, círculo laranja e ouro, ostenta borda ainda mais dourada, como se a aura do Grande Anjo vibrasse Amor Puro para a humanidade. Em volta do anjo sol, passeiam as nuvens, querubins rosados, laranja-esverdeados, pálidos azuis. O vento as trabalha desenhando dragões, elefantes, coelhos, passarinhos. Brancas nuvens-pombas revoam ora em debandada rápida ora em lento tai-chi.
No palco celeste, as cores se alternam do vermelho sangue lustroso ao rosa esmaecido.
Seus olhos bebem a beleza, o peito infla, o coração acelera. 
A majestade da cena é tamanha que o espírito se inquieta por saber que aquilo dura apenas oito minutos. Oito minutos também dura o ato de amor que conduz ao êxtase. 
Mergulha no momento. Agradece.
Vê o sol sumir no horizonte, esconder-se no mar, deixando na lembrança das ondas seus cabelos de luz e a promessa de que voltará no dia seguinte.
A língua prova uma gota de mar que lhe escapou pelos olhos.


foto da internet

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Feliz dia das mães, Delma


Dedilha minhas costas com grande precisão, pressionando os pontos mais doídos e desfaz os nós. Empenha-se com a maior dedicação na solução de cada obstáculo que o meu corpo apresenta. Meus músculos e ossos formam um tabuleiro de xadrez sobre o qual ela faz as jogadas muito bem pesadas, muito bem pensadas. O corpo sente dor e alívio, alternadamente. Minha cabeça viaja; lembro que se aproxima o dia das mães e que não vou ver meus filhos neste dia; ocorre-me perguntar-lhe se ela tem a mãe viva.


Não. Morreu quando eu tinha pouco mais de dois anos. Explicou-me porquê mas não guardei. Meu pai ficou muito deprimido, me levou para morar com minha avó; o meu irmãozinho que tinha 4 anos, deixou com a outra avó. Aperta as para-vertebrais de cima abaixo. Meu pai ficou muito doente, depois sofreu um desastre, ficou cego de um olho e acabou num hospital. Lá ele conheceu uma enfermeira. Casou-se com ela uns anos mais tarde. A família voltou a se reunir sob o mesmo teto, sob a tutela da Ana. Com ela meu pai teve mais três filhos: Alcione, João e Beatriz. Beatriz morreu menina, de engasgo. Ana ficou arrasada, meu pai também.
Eu também fiquei arrasada. Suei de dor, os dedos de Delma encaravam a lateral das minhas vértebras. A voz dela vinha assim meio em suspiros por conta da força que punha na massagem.

João nasceu com um problema nas vias urinárias que só foi diagnosticado aos 15 anos. Ana vivia para este filho. As mãos de Delma descobriam uma série de nós na altura da toráxica. Eu me doía junto com a dor de Ana. A dor para alguns vem em penca. A certa altura, este meu irmão precisou de um transplante de rim. O rim de ninguém da família foi compatível; ele se negava a esperar na fila, mas colocaram seu nome. Quando chegou sua vez, passou o rim para uma criança de um ano, durou mais uns meses e se foi. Disse que já tinha vivido bastante, que queria dar a chance para a menininha. Em meio aos apertões, vou pensando que o rapaz talvez quisesse compensar a mãe pela dor que sentira uma vez e que ia sentir novamente. Sei lá.

Vou engolindo a história trágica, abismada pelo jeito tranqüilo como me é contada. Delma continua me alongando e desfazendo nós. Eu escutando os nós que teve de desfazer em sua própria vida. Ela e o irmão mais velho cresceram sem grandes traumas, parece; aprenderam a se virar. Alguma força este pai conseguiu lhes passar. Um homem analfabeto que entendia de plantas, chás e criação. Delma fala dele com orgulho. E com enorme carinho. E Ana que viveu tragédias com seus próprios filhos foi muito boa para os enteados. Apegou-se a Deus e aos santos.  

Meu pai gostava de dançar, convidava Ana. Ela nunca que ia. Ele ia sozinho ao forró e voltava de madrugada. É, o homem conseguiu se recuperar, pensei, conseguiu achar alegrias na vida. Quando eu estava para fazer 19 anos, entendi que eu não queria mais ficar em Minas. Precisava estudar, queria conhecer o mundo. Meu pai queria porque queria que eu casasse com meu primo. Muitos da minha família se casavam entre primos. Eu não queria aquilo, de jeito nenhum. Além disso, meu primo cheirava mal e gostava de beber. Deus me livre. Peguei nas Listas Amarelas uns cinco telefones, assim ao acaso. Liguei e expliquei: Tenho 19 anos, sou de Minas e quero ir pra São Paulo pra estudar e trabalhar. Preciso de um lugar pra morar, posso morar na sua casa? Meu queixo não caiu porque estava apoiado na maca. Fiquei estupefata! Só aos 18 pra fazer uma coisa destas, só mineiro para achar que o mundo é bom assim...   

Duas pessoas me atenderam e uma delas disse que eu ligava em boa hora, que o estudante americano que morava na casa ia voltar para os EUA e o quarto dele estaria livre, que eu podia ir. Era em Osasco, arrumei minhas coisas e vim. Me fez virar de  frente e começou a tocar os pés e as pernas. Meus pés doíam como se eu tivesse caminhado com ela até São Paulo. 


Logo arrumei emprego numa gráfica, em Minas eu trabalhava com jóias. A família era um amor, gente que adorava estudar. Eram três filhos, dois rapazes, uma moça e a mãe. Fizeram com que eu estudasse, terminei o colegial. Com o tempo, me tiraram do quartinho lá de fora e me botaram pra dentro de casa. Entrei para a faculdade de Fisioterapia, me formei, fiz curso nos EUA, agora eu cuido deles todos. Cuida de mim também. Há tempos meu pescoço não soltava tanto. E ao contar sua história me dá mais, muito mais do que uma massagem.

Consegui comprar meu carro, minha casa, chamo a eles de irmãos e a ela de mãe. Todos os fins de semana eu os visito, são a minha família daqui. Continuo indo pra Minas ver meu pai e minha madrasta mas aqui em São Paulo também tenho uma família. No fim do ano nós vamos pros EUA ficar com meu irmão que mora lá, vamos passar o Natal juntos e ele está arrumando um curso pra eu fazer.

Meu Deus, eu penso, as lágrimas querendo escapar pelos olhos, que incrível! Que história! Penso na mãe dela, a verdadeira, a que morreu quando ela era nenê... Junto dela estes anos todos, só pode ser.