sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Tirar o pó

Na sala de reunião recém reformada da instituição onde trabalha, mal coberta pelo plástico, ficava à mostra a madeira nobre bem talhada, afundada em poeira, pó de cimento e tinta branca lixada.  
Ana descobriu a mesa, reverente, como quem pede a benção ao pai. Abaixou-se para limpar-lhe os pés. Seus olhos vaguearam em súbitas visões do passado. Viu-se menina brincando de cabaninha debaixo desta mesma mesa, a grande toalha vermelha, a branca, de renda, ouviu o alvoroço dos grandes almoços de família, o tilintar da louça fina, dos talheres, as risadas, as vozes queridas, aspirou o perfume do bife acebolado dos dias comuns, sentiu o gosto da sopa de mandioquinha, emburrou-se em vãos muxoxos como quando, em pequena, era chamada a tirar o pó da sala de jantar. Doze cadeiras e a grande mesa que abria em duas asas. Cansava só de olhar. Em cada cadeira, sobrepostos, os anéis entalhados na madeira, subiam em colunas salomônicas do assento ao espaldar. Imenso como adentrar uma catedral.
Enxaguou um pano macio, espremeu-o bem para tirar o excesso de água e passou muitas vezes sobre o tampo machucado e esbranquiçado de tinta; esfregou óleo de peroba, deixou secar, lustrou, as lembranças iam e vinham acompanhando seu movimento, abraçando a sala. Enrolou o pano úmido formando um canudo, enfiou-o por cada uma das frestas das cadeiras, correndo de cima abaixo, incessante, vezes sem conta. Ao findar das horas, toda a fuligem removida deu lugar à cor castanho-avermelhada da imbuia, a cor que tinha seu lar.




sexta-feira, 23 de setembro de 2011

A florzinha

Em meio aos empurrões e xingamentos da criançada brincando no pátio, fui pega de surpresa pela pergunta urgente da menininha. Era toda uma aflição. Avançou para mim em passos firmes, estendendo um botão de rosa amarelo desbotado, muito pequenino. No lugar do caule, um cotoco minúsculo.
- O que que eu faço com esta ROSA? Encontrei jogada no chão.
Do olhar se ouvia o resto da muda indignação: como alguém pode jogar no chão uma ROSA? Que tipo de pessoa faz uma coisa destas?
A florzinha tão insignificante de repente tomou vulto, agigantou-se, pediu consideração. 
Num instante mais do que breve, na palma da minha mão, visitou-me a esperança.


Chega de inverno

E foi por ela, pela menininha da rosa amarela, que costurei o inverno em ponto firme e acomodei-o debaixo da cama. Chega. Já deu. Quero agora pendurar nos cabides do armário a primavera, destrancar o amor, abrir as esquinas, despetalar perfumes, rezar ao vento. Coloco nesta última xícara de chá minha melancolia, dou acabamento no tricô das saudades, embrulho em celofane as despedidas. 
Visto-me de sol e acompanho-me até a porta. Novos caminhos.


imagens da internet

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

O fio

Joca levou o maior susto quando ela se abaixou na classe, perto da carteira dele, chamou seu nome baixinho e lhe deu um embrulhinho de papel. Ele o pegou ao mesmo tempo em que ela erguia o corpo de volta para a cadeira e fixava os olhos na professora fingindo prestar atenção à explicação. Que menina doida, o que será isto? Abriu o pacotinho e lá estava o fio. Castanho e longo, meio dourado como os cabelos dela.
Era verdade que andavam se olhando; ontem mesmo, na fila da cantina, ele tinha lhe emprestado o casaco vendo que ela tiritava de frio. Mas ela o devolveu em seguida como se o toque da lã a queimasse. E agora esta. Que menina doida. Mas que linda era.
A aula demora a terminar, segue para a casa em sua bicicleta, os olhos ficam encompridando a despedida.
Em casa, mal escuta a mãe que lhe oferece o almoço. De dois em dois sobe os degraus da escada, se fecha no quarto para contemplar, sem testemunhas, o lindo fio de cabelo. Enrola e desenrola o fio sobre a escrivaninha, Maria Rita, Maria Rita, o nome passeia em sua boca, prende-o entre os lábios, sente o gosto, repete, ninguém escuta, desenha um círculo, uma cobrinha e finalmente suas mãos, sem que as conduza, formam com o fio um coração.
Ah, que babaca, Joca, vai jogar bola, telefona pro Maurício, faz qualquer coisa mas, pelo amor de Deus, sai dessa! Tá louco? Só sabe dela o nome e o jeito como responde às perguntas das professoras e aquele riso que o faz rir por dentro... 
A tarde longa acaba em noite cheia de sonhos. Acorda ensopado.
Dia seguinte,  se arrasta pelo caminho, chega à escola depois do sinal. Consegue perder a primeira aula. Ufa, mais um tempinho a salvo antes de revê-la...


foto da internet e vídeo gracinha

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Debaixo do Flamboyant

foto de Remo A. Pierri

O bichano sempre existiu, como é que foi morrer? O que é esta coisa de morrer? Ele está muito encafifado. De repente acabar, sumir, como pode? E pega a pá no meio das ferramentas do pai e vai andando pelo jardim em busca de um repouso digno do seu amigo tão velho. Conhece o gato desde que nasceu.  E vai andando, nem sente o cheiro de terra molhada da chuva da manhã, do perfume do jasmim que a mãe plantou. E onde será que vai botar este querido para descansar para sempre estes pelos, estes ossinhos? Olha para todos os lados, escolhendo, avaliando. Ali! Debaixo do flamboyant, será que a mãe vai ficar brava, azar dela, é o melhor lugar, o mais bonito, o Tigrinho merece.
Finca a pá na terra, empurra com força, tira a primeira camada e repete a operação e repete mais de uma vez até que cava um cova bem funda, sete pés, o pai falou que deve ser de sete pés, pra gato deve ser menos, vou deixar por três, o calor está forte, encosta no tronco da árvore, descansa e pensa de novo nesta coisa de acabar.
Vai buscar o gato enroladinho numa toalha. A mãe deixou.  Vem devagar fazendo uma oração, é uma família de pessoas que têm fé, oração para gatos deve ser dirigida aos anjos do jardim, meu santo anjo do jardim, cuida do Tigrinho, ele é meu amigo, leva ele pra algum lugar bem bom pra gatos.
Com todo cuidado do mundo, como um pai colocando no berço um filho querido, o menino acomoda o bicho no solo fundo. Na vala.
Cobre de terra o bichano, que difícil é agüentar esta parte, como é que as coisas se acabam, ontem ele estava aqui miando, se enroscando na minha perna, hoje, nada, este feixe de pelos embrulhado numa toalha. É a brevidade da vida. Amassa a terra com força, as lágrimas regam o solo. 
Ele sobe no flamboyant e chora.



Não tinha nenhuma foto do Tigrinho. achou esta na Internet, igualzinho, e botou no porta-retrato em cima da escrivaninha.

sábado, 3 de setembro de 2011

Dona Thereza de manhã


Sai à varanda para encontrar o vaso que comprou finalmente para plantar a muda de orapronobis. Despeja a terra preta no vaso e faz uma cova como se ali fosse enterrar as saudades que tem de sua mãe. O galho cheio de espinhos machuca seus dedos corajosos, o coração é que dói apertado dentro do peito. Cobre a muda com a terra como quem cobre um caixão. Joga um punhado de terra num adeus final. O que fica para olhar é o verde vivo das folhas lisas, a esperança de que um dia floresçam pétalas rosadas como o sorriso que se foi. Ora pro nobis!





Dona Thereza à tarde


Não sabe por que são amarelas e só amarelas. Todos os dias ao caminhar pelo bosque para beber com os olhos as delicadezas de Deus, ela contempla as borboletas e se espanta. Todos os dias se espanta. Vê a pequenina de asas transparentes pousar no caule da íris, segue seu vôo com o olhar, lá vem outra maior, e outra e outra, parando aqui e ali, pousam nas flores do Ipê. Quem desenhou a beleza que portam nas asas, que espelho lhes ensinou a simetria, não tem uma igual à outra. Mas, que curioso: todas amarelas. De onde vem a cor das asas das borboletas? E se indagando Dona Thereza tinge de luz sua solidão.

foto da Internet

Dona Thereza à noite



Lava a louça em tal alegria que a água da torneira é como banho de esguicho no jardim. A pilha de pratos, a travessa funda da sopa da noite, ao passarem debaixo dágua, a arremessam num jato ao canteiro de sempre-vivas próximo ao poço dos peixes. Suas mãos enfiadas na água pescam restos de comida como quem pesca lambaris. A louça está limpa e sua alma lavada neste banho que a levou de volta aos oito anos. 


foto da Internet