sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Conversa dos pombos na janela

É um pouco como a vida
Não fossem os fios boicotando a paisagem
Seria perfeita
Mas
                            Quem quer perfeição?

Fruta inspiradora

Pela fresta da veneziana esgueiram-se preguiçosos os raios do sol da manhã desenhando, no teto do quarto, estrias luminosas. O rosto é lambido pelos mesmos raios que deixam sombra no nariz,  mas cobrem de luz as pálpebras cerradas. Espalham-se sobre o travesseiro os cabelos emaranhados em cachos, a mão toca os olhos numa queixa: já?
No instante seguinte o sonido agudo enche o quarto: Laura se ergue num salto, manda com força a mão espalmada sobre o miserável, dá um rugido, joga para o lado as cobertas, leva ao chão um dos pés e busca com a ponta dos dedos os chinelos que se esconderam em alguma dobra do tapete ao pé da cama. Encontra o fugitivo, desce a outra perna para o chão, rápida debruça sobre a colcha estendida, agarra o roupão, veste-o enquanto corre escada abaixo, voa para a cozinha, abre a geladeira, pega o mamão, o pó de café, a manteiga, o leite, o pão, a geleia. Tudo em raro equilíbrio é colocado sobre a mesinha, a cafeteira já espera com água ao lado da xícara, o fogo é aceso, a torradeira aceita o pão com um crec, pega na porta o jornal, passa os olhos nas manchetes enquanto faz xixi e, finalmente, senta-se em calma para desfrutar a papaya que se enche de aveia e linhaça: afunda a colher na fruta e a leva à boca onde guarda por um momento o sabor, olhos fechados, silêncio absoluto. Este é o seu minuto de paz antes de começar o dia.


Secava. Abriu a geladeira para refrescar-se. Achou-o em primeiro plano, cortado ao meio, dentro de um tupperware. Tomou-o nas mãos e foi para o computador.
Sementes negras retiradas, era uma cama-convite, um ofurô sem água, um ninho sem filhote, um oco chamando pássaro. Sentou-se na beirada, puxou os pés para o centro, afundou na reentrância cor de sol de fim de tarde. Girou de um lado para o outro como numa rede, várias vezes, a areia das horas correndo a ampulheta. A pasta densa massageou-lhe a pele, hidratando a aridez. A umidade da fruta penetrou-lhe as células até esbarrar nos ossos. Lábios de gozo no banho alaranjado de mamão. ...ahn? O que era mesmo que tinha de escrever?

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Temporal



Tinha umas poucas horas livres, foi porque lhe chamaram de urgência. Chegou lá era só água, a moça chorava de soluçar. Que que é isto, o que aconteceu? Aproximou-se tímida, ela desabou. Matilde teve de ouvir, não houve alternativa. Dali a pouco, chegou o rapaz, mordendo os lábios, entrou na conversa, respondeu à mulher, explicou o que sentia, o seu lado da história. Matilde o ouviu também. Teve de dizer, nem sabe como. Escapou: Ó, eu estou aqui escutando vocês mas o que importa é vocês se ouvirem.

Assim que deram uma brecha desapareceu para passar a roupa. Aproveitou para fazer uma comidinha para os dois. Teve pena. Enquanto descascava batatas e picava cebolas, olhou pela janela. O dia escurecia. Os raios rasgavam o céu, um ou outro trovão bombava. “Será que o temporal já passou ou está só começando?" Na mente a imagem do caos que fora sua vida. Três maridos, uma pá de desencantos. Agora vivia bem, mas no começo, muitas vezes, teve de fazer faxinas radicais. Doídas, até marcas deixaram. Cicatrizes. Não pode evitar a separação, cada um para um lado, culpando o outro. Amarrados. Mas esses moços são inteligentes. Se ela tinha aprendido com o Adeílson que o segredo do casamento era fazer limpezas regulares assim que percebiam entulho se formando, eles podem aprender também. Misturou os cogumelos com as vagens e salpicou tudo na manteiga e no azeite. Eles. A gente pode ensinar, mas aprender é com cada um.

Foi em busca de soyo e achou na geladeira uma quantidade industrial de embalagens. Abriu uma, direto na panela. Era kechup. Abriu outra. Era mostarda, meus deus, não estou enxergando nada, preciso trocar de óculos, como será que vai ficar o gosto disso? Só queria um pouco de soyo! Uma mulher não quer ter ao lado alguém menor que ela; a gente quer alguém que ande ombro a ombro com a gente, que assuma o que pode e o que não pode. Botou a frigideira para esquentar. Levei três maridos até achar um que pensasse como eu. O Valderez, deus me livre, que traste, ainda bem que se encantou com a Delfininha e me largou; azar o dela. O Wilson gostava de mandar mas era um frouxo. Fui uma idiota de me meter com ele. Agora, o Adeílson, este sim, sabe como conquistar uma mulher, sabe dividir, sabe somar.

Mas vai ver que é isto também que o seu Nelson quer, foi isso que ele me falou - continuou a refletir ao empanar o peixe na farinha de trigo – ele disse: eu não sou nem mais nem melhor do que ela. Tenho meus defeitos, tenho minhas fraquezas. O peixe foi colocado com cuidado na frigideira quente, o fogão é péssimo. E esta coisa de se atrasar, onde já se viu? A dona Regina tem razão, ela não pode contar com ele. Ah, eu não aguentava! Mas ele compensa, faz tudo por ela. Todo mundo tem defeito, dona Regina também não é fácil. É que eles não têm filhos. Com filho a gente é obrigada a aprender muita coisa. Lembrou dos mutilados que viu na TV. O cara tocava violão e a moça trocava as fraldas do bebê. Tudo com os pés. Credo! Também já estou exagerando, fazendo drama! O dia estava agora tão escuro que foi preciso acender mais luz. Os trovões, porém,  tinham amainado.

Conversavam em voz baixa sentados no sofá, não se tocavam ainda. Trocavam olhares compridos. Da cozinha, Matilde viu e sorriu. Lembrou da dona Ritinha, a patroa antiga: o amor precisa de cuidado, de consideração. Eta velhinha sabida. Foi com a força dela que se separou do Valderez.


Tudo precisa de cuidado e consideração. Até ela. Tinha de voar dali. Marcara com o Adeílson no ponto do ônibus. Pôs a mesa, fez os pratos; avisou a patroinha que a roupa estava passada e que deixava cortados para ela, na bancada da pia, uns legumes para que fizesse uma sopa mais tarde. Já eram cinco da tarde. Foi embora.  

Nelson e Regina ficaram em casa secando as águas do tornado, removendo o próprio entulho; talvez encontrem um bilhete de amor que se molhou.

A foto é da Lu. Uma grande cronista visual de SP. Veja mais fotos dela em: http://www.flickr.com/photos/mlsirac/

Três mini - contos num janeiro de tormentas

A rua de asfalto novo é hoje um rio caudaloso. A placa “É PROIBIDO PISAR” flutua por uns metros e se encosta a um pedaço de madeira improvisando uma ponte.
Ironia.


Os olhos nada dizem, a boca tão pouco. A mão direita segura as cartas com firmeza enquanto a esquerda tamborila sobre a madeira. Três pares de olhos buscam decifrar a inexpressão. E a direita, como num leque, abre sobre a mesa um Royal Street Flash.


Passou pelo espelho e reparou mais uma vez a barriga imensa; entrou na cozinha. O perfume invadiu suas narinas. Sentou-se à mesa, cheirou-o num remedo de êxtase. Procurou a faca, cortou-o ao meio; depois  meteu-a na manteigueira e lambuzou a especiaria. A barriga que esperasse nova segunda feira.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Feliz

Há controvérsias sobre seu sexo. Parece que os documentos dizem que é macho mas a veterinária que cuidou dela diz que é fêmea, ou é o contrário, não lembro. Foi dada de presente pelo padre para o noivo, no dia do casamento, um dia de chuva que se abriu em sol. Chamaram-na Feliz. Pela cara vê-se como lhe cai bem o nome, o fotógrafo paciente captou um momento perfeito. Dia azul, deixam-na sair da gaiola e, Feliz, vai passear. Desce uns 200metros pela grama verde, passando em meio a flores e arbustos sob a copa gigantesa do flamboyant e sobe uma escadinha de bambu que o dono fez de presente para ela. São cinco ou seis degraus que ela escala com graça até encontrar o galho mestre da pequena árvore por onde ela alcança o flamboyant que é bem mais alto. Lá de cima chama os passantes para que vejam onde está, que corajosa, que esperta. Depois de um tempo, desce. Ruma para a piscina. São mais alguns metros de caminhada requebrada até que chega à mesa de ferro branco. Sobe pela cadeira, se apoia na mesa e vai se agarrando no pau do guarda-sol com pés, bico e asas. Dá um nó sobre si mesma, mais de um, e por debaixo das asas, lança a cabeça à frente num sorriso. Não sei em que circo aprendeu como se faz, claro que sorri, qualquer um concordaria com isto, e bica o ferro sem dó tirando das bicadas o que parece ser um grande prazer. Feliz. Chega o dono, ela desce para a mesa. Ele fala com ela como se falasse com a mulher amada; ela reconhece o tom da voz, retribui com sorrisos e doces bicadas, abre as asas, oferece o peito para receber afagos, faz lembrar um cachorrinho. Que cena!
Mas sabe, me preocupo, acho que corre perigo. Não é raro encontrar pela manhã, espalhadas na grama verde, voejando ao vento, muitas penas de galinha de angola; pretas pintadas de branco, cinzentas, grandes e pequenas. Quem falou que não gostariam também da carne coberta pelo azul vibrante, pelo lindo amarelo das penas da arara? Que não esqueçam de trancar a gaiola à noite, que Feliz não saia no escuro para o abraço do predador.

Mais fotos do Remo em Galeria do Remo

Via Sacra - é da Regina Gulla mas fiz questão de postar na tempestade

As inteligências estão pasmas
frente a dona Ilair
e seu  cachorrinho
Ela, envolta em água
tábuas e estrelas  mortas
como pedras
e as mãos dos meninos-Jesus
no prédio  ao lado
lhe dão a corda

Ilair desamarra-se do passado,  prende
o futuro na cintura
(não foi preciso pregar os pés, nem  quebrar os dentes
tudo já lhe estava arrancado)

A dona Ilair  já
pregada à líquida cruz, avalanche e lama
chama pelo menino  Jesus
Ele ouve, mora ali vizinho, o menino
Jesus do Fernando  Pessoa

Ela não está abandonada, feito o nosso Cristo
Ela tem  um cão abraçado ao colo, seu amigo

Já pregada a uma  cruz
passada, de dor inteira gasta
a dona Ilair se ata
à  corda e ao abraço
e salta
para a sua segunda cruz, de  águas

Mas, quê que é isso?
Por que lhe rouba o cãozinho
esse rugir telúrico
da líquefeita Gaia?

Por que, senão em sacro ofício
para que, pela segunda vez
nós nos salvássemos?

........................................................................................................

Obrigada, dona Ilair,  obrigada pela sua dor e lágrimas.
Sabe, meu coração mudou o  passo
e aqui no quintal seu cachorrinho passou, na viagem para o céu,  fazendo xixi nas uvas que estão nascendo.
Olha, daqui a pouco vou me  banhar e querer ser linda feito você, Ilair.
Mais um abraço da  Regina Gulla


... Veja mais da Regina no Blog:
Bosque Sonhador

domingo, 16 de janeiro de 2011

A história de uma carta

Quero escrever a história de uma carta. A carta, sei qual é: o pedido de casamento feito por meu avô paterno à minha avó em 1887. Escrita numa caligrafia delicada, letras muito pequenas, caídas para a direita, com frases do tipo “ peço-lhe ter a bondade de guardar todo o segredo deste assumpto pois como sabe são negócio mui melindroso tanto para a s enhora como para mim”.

Não sei se conviria transcrevê-la toda ou não; dependeria de qual aspecto eu quisesse enfatizar: o teor da carta em si ou a história da dita cuja. Também não sei se escreveria na primeira pessoa. Está me ocorrendo a ideia de escrever esta história da perspectiva de uma árvore da praça que pode ter sido testemunha de todo o romance e do que veio depois. Vejamos como poderia ficar.

Num primeiro parágrafo a árvore contaria as circunstâncias em que a carta teria sido escrita, quanto tempo meu avô levou para ter a coragem de escrever àquela bela senhorita fazendo-a saber de seus sentimentos e intenções. Talvez contar dos olhares que trocaram antes de a carta ser escrita, os comentários com os amigos sobre bailes em que dançaram juntos, o beijo roubado debaixo daquela sombra.

O segundo parágrafo contaria o que se passou numa tarde preguiçosa, 10 anos depois do casamento realizado, quando a jovem senhora encontra,  casualmente,  a carta no fundo da gaveta de uma escrivaninha, enrolada com uma fita cor-de-rosa e coberta por papel de seda. Ela relembra o início de sua vida de casada, os sonhos que teve, os desencantos.

No terceiro parágrafo, uma de suas filhas, a solteira, poderia pedir ao pai autorização para guardar a carta, agora que a mãe estava morta. O pai dá a autorização, isto tudo acontecendo no banco da praça, à sombra da grande árvore, depois que viessem do enterro, braços dados, e sentam na praça para descansar antes de enfrentar o vazio. Esta filha seria a única que sobrara em casa e cuidaria do pai. É professora primária, adora fazer ginástica. O pai, em seu íntimo, no silêncio, recorda alguns momentos que tem como preciosos, da vida em comum, um dos quais pode ser mesmo a escrita da tal carta, tantos anos passados, ele então apavorado pela perspectiva de receber um não da amada senhorita.

No quarto parágrafo, a carta poderia cair nas mãos de uma sobrinha adolescente que não tem sensibilidade suficiente para apreciar tal legado. Às gargalhadas, lê a carta para algumas amigas, todas sentadas no banco da mesma praça ancestral. A árvore se contorceria ao escutar o deboche das meninas e faria cair sobre elas umas favas velhas e malcheirosas que as expulsariam dali. Ou então cairia nas mãos de um dos netos, filho de um dos filhos do missivista e este rapaz acharia conveniente perpetuar a carta encerrando-a numa bela moldura dourada, coberta por vidros de ambos os lados. A árvore teria visto o rapaz mostrando a carta para um conhecido depois de já enquadrada, aguardando o momento de ir para a parede, debaixo da fotografia do avô circunspecto, de cabelo branco cortado à escovinha.

O último parágrafo mostraria o filho deste rapaz perguntando ao pai que papel era aquele dentro de uma moldura tão linda ou então uma bronca severa da tia solteira na adolescente insensível e depois a supresa desta ao receber, ela mesma, a cartinha de um garoto a pedindo em namoro.

Mas não sei se escreveria isto tudo, se bem que segundo Manoel de Barros tudo o que não se inventa é mentira. Mas isto só vale para a poesia dele, afinal. Ou não?

sábado, 15 de janeiro de 2011

O homem escondido

Lá na chácara do flamboyant tem um galho de pau ferro que caiu da árvore e juro que tem dentro dele um homem deitado, se agarrando num pedaço da madeira. A gente pode ver os músculos do braço, o cotovelo, a mão insinuada, a lateral abaixo do braço, esticada, as costas, o início das nádegas, depois ele se esconde. Todos os dias que passo por ele, eu o acaricio pensando em como gostaria de poder tirá-lo de lá. O rosto, ele não mostra; o vemos apenas de costas com os cabelos embaraçados. Também, jogado no mato, quem pensaria em pentear os cabelos, não é?

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Destino

O ar quente pesa como saco de cimento em costas de criança. Um trovão escandaloso seguido de relâmpago ilumina a escadaria e a fivela lampeja chamando a atenção do homem deitado no degrau. Ele solta um bafo bêbado, estica a mão escura, olha a fivela dourada, olha o céu. A chuva começa a despejar gotas gordas que ele bebe botando a língua para fora. Deixa que lave a fivela e a lambe como se a água da chuva não bastasse para a limpeza que pretende empreender; depois, esfrega o metal com força, num movimento curto e ritmado até que o brilho se fixa.


Tira da cintura a corda que segura as calças largas, desmancha o encordoamento. Dois fios mais finos faz passar pela fivela de um lado e de outro e acaba num nó. Cinto novo, sai pela rua a assobiar, mãos nos bolsos, largas passadas. Nas poças dágua faz questão de pular para erguer um chafariz. A chuva escorre sobre o rosto e o fato; fecha os olhos, puro desfrute.

A moça, cabeça baixa, vem caminhando pela rua depois de terminado o namoro, na rodoviária. A chuva cai forte batucando sobre o guarda-chuva, os olhos também chovem. Decidida a se anestesiar, ela se entrega à barulheira, faz suas passadas entrarem no rítmo, perde a visão do que possa estar à frente.

A colisão é prevísivel. Eles vão se atropelar, claro! O bêbado e a abandonada. O cachorro que espreita o movimento, deitado na varanda da casa, dá um latido sonoro alardiando o perigo. Não ouvem, nem ele, nem ela, submersos em chuva e fantasia.

O encontrão os arranca dos sonhos. Enraivecidos com a má vontade do destino, alteiam as vozes para culpar um ao outro. Os olhares se cruzam, ela vislumbra por trás da sujeira um nobre olhar. Será um príncipe? Caem imediatos num riso solto e longo. Ao findar, o homem se apresenta: Bernardo das Dores. Ela estende a mão: Marina. Das Alegrias.

Aquele encontrão destravou a roda do destino. Bernardo achou, naquela mesma tarde, um emprego no circo. Marina, ao chegar em casa, recebeu a vista inesperada do amigo de infância que a levaria a conhecer um grande amor.

O cachorro olha a cena sem desconfiar de nada.



set a dez 2010

primeiro dia de blog

Neste blog pretendo postar pequenos contos e poemas, talvez algumas fotos e vídeos. Farei isto ao menos uma vez por semana. Espero encontrar quem me leia e vou adorar se vierem comentários. Muito triste escrever para ninguém, não é?