sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Temporal de Matilde

Tinha umas poucas horas livres, foi porque lhe chamaram de urgência. Iam viajar, precisavam que passasse umas roupas. Chegou lá era só água, o patrão chorava de soluçar. Que que é isto, o que aconteceu? Aproximou-se tímida. Ele desabou, ela teve de ouvir, não teve alternativa. Dali a pouco, chegou a mulher, mordendo os lábios, entrou na conversa, respondeu ao marido, explicou o que sentia, o seu lado da história. Matilde a ouviu também. Teve de dizer, nem sabe como. Escapou: Ó, eu estou aqui só escutando mas o que importa é vocês se ouvirem.
Assim que deram uma brecha desapareceu para passar a roupa. Aproveitou para fazer uma comidinha para os dois. Teve pena. Enquanto descascava batatas e picava cebolas, olhou pela janela. 



O dia escurecia. Os raios rasgavam o céu, um ou outro trovão bombava. “Será que o temporal já passou, ou está só começando? Na mente a imagem do caos que fora sua vida. Três maridos, uma pá de desencantos. Agora vivia bem, mas no começo, nossa, muitas vezes teve de fazer faxinas radicais. Doídas cicatrizes. Não pode evitar separação, cada um para um lado, culpando o outro. Amarrados. Mas esses moços são inteligentes. 


Se ela tinha aprendido com o Adeílson que o segredo era fazer limpezas regulares assim que percebiam entulho se formando, eles podem aprender também. 



Misturou os cogumelos com as vagens e salpicou tudo na manteiga e no azeite. Eles! A gente pode ensinar, mas aprender é com cada um.




Foi em busca de soyo e achou na geladeira uma quantidade industrial de embalagens. Abriu uma, direto na panela. Era kechup. Abriu outra. Era mostarda, meus deus, não estou enxergando nada, preciso trocar de óculos, como será que vai ficar o gosto disso? Só queria um pouco de soyo! 

Uma mulher não quer ter ao lado alguém menor que ela; a gente quer alguém que ande ombro a ombro com a gente, que assuma o que pode e o que não pode. Botou a frigideira para esquentar. Levei três maridos até achar um que pensasse como eu. O Valderez, deus me livre, que traste, ainda bem que se encantou com a Delfininha e me largou; azar o dela. O Wilson gostava de mandar mas era um frouxo. Fui uma idiota de me meter com ele. Agora, o Adeílson, este sim, sabe como conquistar uma mulher, sabe dividir, sabe somar. Mas vai ver que é isto também que o seu Nelson quer, foi isso que me falou - continuou a refletir ao empanar o peixe na farinha de trigo – ele disse: eu não sou nem mais nem melhor do que ela. Tenho meus defeitos, tenho minhas fraquezas. Mas ela também, ué! O peixe foi colocado com cuidado na frigideira quente, o fogão é péssimo. 


É que eles não têm filhos. Com filho a gente é obrigada a aprender muita coisa. Lembrou dos mutilados que viu na TV. O cara tocava violão e a moça trocava as fraldas do bebê. Tudo com os pés. Credo! Também já estou exagerando, fazendo drama!  O dia estava agora tão escuro que foi preciso acender a luz. Os trovões, porém, tinham amainado. Os patrões conversavam em voz baixa sentados no sofá. 



Da cozinha, Matilde lançou-lhes um olhar e sorriu. Lembrou da dona Ritinha, a patroa antiga: o amor precisa de cuidado, de consideração. Eita velhinha sabida. Foi com a força dela que se separou do Valderez. Tudo precisa de cuidado e consideração. Até ela. Tinha de voar dali. Pôs a mesa, fez os pratos; avisou a patroinha que a roupa estava passada e que deixara cortados os legumes para a sopa da noite. Já eram cinco da tarde. Foi embora.  

Nelson e Regina ficaram em casa secando as águas do tornado, removendo o próprio entulho; talvez encontrem um bilhete de amor que se molhou.



imagens da internet


sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Dia de Redação

Era para um concurso. Sentados à minha frente doze carinhas jovens e uma canção. 
- Pode escrever sobre a nossa vida? 
- Pode. 
- Pode inventar? 
- Pode. 
- Pode misturar? 
- Pode. Tudo pode, desde que a história seja boa, que prenda o leitor. Comecem que as ideias vem. Palavra chama palavra. Este é que é o barato de escrever.
Demorou até que todos os rostos se concentrassem, os lápis começassem a correr o papel. No alto-falante uma viola soava acordes que me levavam para longe dali. 
Olhei para o chão. Um fio d’água vinha do fundo da classe até a porta que ficava à frente. A água foi se avolumando, engrossando e logo cobriu os pés das pessoas. Ninguém parecia notar. Logo chegava aos joelhos. De repente, um golfinho, dos pequenos. Um miúdo e outro e mais outro. Nadavam em volta das carteiras, rebolando as caudas. Guinchavam. O pessoal não reparava em nada e escrevia, escrevia, escrevia. Cada vez mais rápidos. A água lhes tocava os joelhos e suas ideias não emudeciam, pintavam o papel.
Alguém abriu a porta: a água escorreu enchendo o pátio. Os golfinhos nadaram para fora deixando a meninada a escrever ao ritmo da música. Sorriam ao reler seus escritos, uma alegria solar foi tomando conta da sala e a música pedia palmas.
Assim que a água baixou por completo, as crianças entregaram suas folhas, azuis como as águas do mar. Que histórias contarão?

fotos da Internet

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Cada um vê o que pode







  

Andava a catar camarões pela areia. O barco pesqueiro deixara rastro. Nos sulcos profundos que a água do mar cobria e descobria, boiavam camarões, peixes pequenos e lulas. Agachado ao lado do baldinho, munido de pá e garfo, Naldinho escolhia cuidadosamante os tesouros que ia ajeitar no monte secreto que esculpia perto dali. Era uma espécie de escultura semi-viva, a areia formando um GRANDE VULCÃO enfeitado de camarões e outros peixes. 
- Vou pintar!  Vou pintar! – berrava a garotinha empunhando um pequeno pincel. Ela vinha na direção do menino e estancou admirada ao ver o garoto enchendo o balde.
- Nooossa!Você que pescou?
- Não. Achei na areia. Sempre eles deixam aqui. O que você vai pintar?
- Não sei, estou procurando ainda. E balançava o pincel, riscando o ar. Queria um comprido mas minha mãe só me deixou pegar este.
- Eu tenho uma coisa linda pra você pintar. Quer ver?
- Claro! Onde é que está?
- Vem comigo.



Os dois se embrenharam pelo mato ralo que beirava a praia até chegar na pequena cabana feita de folhas de bananeira e canos velhos de plástico.



- Que legal, aqui!!! ela disse.
Naldinho ajoelhou perto do vulcão, aplicou-lhe os camarões e os peixinhos recém “pescados” e soltou:
- Não é lindo?! Pode pintar.
 A garota estava pasma – que menino estranho, corajoso. Mas ali não tinha papel, nem tinta, só o pincel curtinho roubado da caixa da mãe.
- Já, já eu volto, espera aí – ela disse. Vou trazer papel e tudo, cuida bem do seu CUSCUS. E saiu correndo de volta para a praia.
- Cuscus? O que que é isto? 
  


sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Isto é que é ...



Preguiça:
Os olhos semi-cerrados entrevêem a rede na varanda de sua casa, num balanço lento e convidativo. A moleza é tanta que nem consegue aceitar o convite.




Vontade:
Às segundas, quartas e sextas, depois de sair do serviço, toma o ônibus até o metrô, pega o metrô, faz duas baldeações, toma mais um ônibus até o ponto final e anda oito quarteirões em subida para ver a amada.

Dúvida:
O coração do farmacêutico ficou balançando entre as duas moças: ficar com a morena era como aceitar uma oferta de emprego imediato num laboratório pouco conhecido; escolher a ruiva era o mesmo que ficar à espera da resposta do grande laboratório que só viria no final do ano.

Certeza:
Beijou a primeira e se regalou. Mais vale um pássaro na mão do que dois voando.



Tristeza:
Nunca voltaria a receber o convite que lhe fizeram aos 11 anos para trabalhar no circo. A mãe não quis nem terminar de ouvir a proposta. Portas fechadas para sempre.



Paciência:
No meio da fofura colorida de meio metro de altura, buscou a ponta do fio da lã azul que se enrolara no vermelho, no amarelo, no lilás, no prata, no preto e no cinza. Depois de duas horas ainda estava sentada no mesmo lugar, a montanha já baixara para 20 cm e 19 novelos estavam organizados por cores.


Medo:
Pulou da porta do quarto aos lençóis num único salto para escapar das garras das bruxas que moram debaixo de sua cama.

Solidão:
Olharam-se distantes e nem uma palavra foi trocada. Caminharam em direções opostas.





Demais:
Pegou o baldinho e foi regar o mar.


Desaponto:
Estendeu-lhe a mão e esticou o rosto para o beijo mas ela já estava cumprimentando o próximo.


Saudade:
Fechou os olhos, pôs o livro de receitas bem perto do nariz para ver se encontrava por ali aquele cheiro de comida de mãe.


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