sábado, 27 de agosto de 2011

As mães e eu

Era madrugada e eu estava insone. Sei que não devia mas meu corpo zonzo caminhou até a luzinha verde do computador acusando-me de tê-lo deixado trabalhando. Fácil acessar a Internet a esta hora alta. Logo o vídeo se enche de emails de alguém rico de tempo livre. As mães de Dadaab. Dadaab, onde será isto? Quênia.

Lá vem desgraça mas estou precisando chorar.
A criança de 7 anos, tamanho de 1, um galho seco tentando erguer a cabeça, olhos enormes. As mães, ossos escondidos sob panos multicores. Que faço eu com estes horrores? Que fizemos nós? O Haiti é aqui, meninas de 10 anos estão fazendo arrastão. Está tudo desmontando? Debruço-me sobre o teclado num soluço, a imagem some, meu Deus, desliguei o micro no tapa, que me importa? O que importa se também tenho fome. Meu corpo todo crivado de ausências.

Você não vai querer ver o vídeo no youtube: Child dies every six minutes in Somalia famine. Vai?

Mães de Daadab

Elas chegam aos milhares
Numa marcha lenta
Arrastando
Horrores

Carregam os corpos cítricos
De suas crianças
Azedas
Murchas dores

Seus passos rastejam
A esperança
Coberta de pó
Esquecida no tempo

Rebento da seca

Os panos coloridos
Cobrem o tormento

Em suas mãos
Uma outra e mais uma
Atadas ao caminhar
Rumo a milhares de nada

Almas curvadas
Imploram pela farinha branca
Que assusta os lábios negros
Sem gosto, sem rosto, só restos

Os seios ralados
Rachados de tanto tentar
Pingam a pele

No chão de terra
Brota um corpo de galhos
Engatinhando uma infância morta

O médico diz que não há nada a fazer.

Em cada corpo
O último a morrer
Grande, vítreo
É o olhar

Eu vejo de longe

O olho opaco
Embora cravado na seca
Ainda produz uma lágrima
Tão transparente quanto a minha.

                    por Maice Rocha Glaser (poeta querida ao alcance de minha mão)

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Que pariu!! ou A Hora da Decisão

Glorinha espera pela mãe no portão da escola e parece que o tempo não passa... Depois de olhar para todos os lados, indagar do porteiro, conversar com o último amigo que saía, olhar no celular para ver as horas, ela se senta na calçada e apóia as costas no muro. Coloca no colo a mochila com as preciosidades do dia: o bilhete do Jorge e a revista que a Lu emprestou. Boa idéia, vai ver a revista... lá tem uma reportagem sobre sexo e adolescentes, muito legal, a Lu disse. Antes relê o bilhete do Jorge e alisa bem o papel. Levanta os olhos para ver a amiga ao longe, já dobrando a esquina, de mãos dadas com a mãe. Glorinha nunca fica de mãos dadas com a mãe; sua mãe só liga para os machos dela. Pelo menos é isto que o irmão vive dizendo quando apronta na escola e a mãe vem dar bronca, quem é você pra me criticar, ele diz, você só pensa nos seus machos. A garota não gosta de ouvir isto, não chega a defender a mãe porque também sente muita falta dela, sente falta de alguém que seja como a mãe da Lu, mãe que faz comida, que conversa, que compra pra filha uma roupinha de vez em quando, que sabe onde a filha está. A mãe dela, não; tem sempre uma desculpa. Glorinha já não espera nada, a não ser isto: que ela venha pegá-la na escola, foi o combinado porque o lugar ali é barra pesada, Glorinha avisou que tem medo de ir pra casa sozinha.
A noite começa a se anunciar, os carros já estão de farol aceso, seu Nelson, o porteiro, já fechou a escola, está impaciente para ir embora. Dona Nair, a mulher dele, não pode esperar, foi na frente, tinha aula à noite. Ele decide, vambora, menina, eu levo você, onde você mora? Glorinha se levanta. Sem alternativa, sozinha ali ela é que ela não vai ficar, pede desculpas, fica sem jeito, seu Nelson é muito legal de fazer isto. É na comunidade ali no final da avenida, seu Nelson, não é muito longe. 
Ele liga o motor do Fiat 147, em perfeito estado, a menina se acomoda no assento ao lado do motorista, abraçando a mochila e tenta explicar pro seu Nelson que a mãe devia estar muito ocupada. Já quase chegando em casa, uma boa meia hora de trânsito depois, estica o olhar pra dentro do Bar do Caixote e parece que a vê sentada, rindo, tomando cerveja.
Foi assim que Glorinha voltou para a casa da avó. No interior. 



Foto da Internet

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Vovozinha! Ai!

A avó tem pelo neto um amor inchado de admiração. O garoto faz comentários certeiros como flechas de Robin Hood. Frente ao espelho, os óculos a meio nariz, Dona Belinha arranca, com uma pinça, um e outro fio de cabelo branco que se infiltra pela cabeleira já tingida. Vovozinha... Que danado! Ele que a aguardasse.

Ela observa o rosto em detalhe, confere as rugas, passa um tira-olheiras nelas todas, espalha um blush levinho. Na última olhada repara que algumas trilhas começam a aparecer em meio à outonal mata capilar. Duro é não poder nem ao menos revidar bem alto: ‘OLHA AQUI, MENINO, VOVOZINHA É A VÓ !!’
Cai na risada, o boomerang a atingiria direto. Na testa. kkkkkkkkkkkkkkk

Cada tempo tem sua época

Ele repetiu o número pela terceira vez. A mulher o ouvia, concentrada, tentando ao mesmo tempo digitar as teclas do celular como vira o filho fazer, eles não tomam mais nota em papel, eles digitam tudo. E numa velocidade... o problema eram os óculos. Os números no aparelho eram tão pequenininhos e ainda cada um vinha rodeado de letrinhas, ela se confundia, esquecia o que já tinha digitado; olhava o mostrador, eles diziam visor, parece, e lá estavam dois cincos, como é mesmo, meu bem, 559? Não, mulher, 66275936, soletrou.  Ela deu um suspiro. Pegou a caneta dourada de dentro da bolsa e anotou o número na agenda de florzinha.


sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Azul Royal

Foi longa a espera na fila do ônibus que a levaria à José Paulino. Estava frio e úmido, ela tinha de voltar antes da hora do rush. Desceu no ponto próximo à loja de armarinhos e caminhou rapidamente em meio aos passantes carregados de pacotes. Era freguesa de seu Eugênio desde os tempos de mocinha, quando morava perto dali. Depois de mudar, sempre voltava à mesma loja numa nostalgia meio brega. As lãs de seu Eugênio inspiravam-lhe. No fundo era tudo bobagem, lãs podiam ser encontradas em qualquer armarinho mais perto de sua casa. Porém, ninguém conversava como ele. Seu Eugênio tinha sempre um caso para contar e bastava vê-la entrar na loja para que seus olhinhos pretos começassem a brilhar. Desta vez, enquanto ele lhe mostrava as lãs, as novidades, contou a história da moça que recebeu a visita de um anjo. Ah, como ela também adoraria receber a visita de um anjo. Ela também fala com eles, com seu anjo da guarda, pede proteção quando está sozinha na rua, pede inspiração, pede graça.
- Como assim, seu Eugênio?
- Pois é, minha filha, eles nos visitam, sim. Esta moça, a Juracy, diz que tem uma coisa muito forte com os anjos, conversa com eles como quem conversa com um amigo, sabe, e eles lhe respondem com intuições, com pensamentos.
Foi então que a Tânia resolveu pedir o novelo de lã azul royal. Seu Eugênio começou a abrir a boca e não fechava:
- Não acredito! Você não sabe o que me aconteceu hoje cedo. Apareceu aqui na loja um vendedor de linhas que eu não via há uns seis anos, veio me pedindo que comprasse todo seu estoque, que ia encerrar o negócio, que tinha de mudar pro interior, que a mulher estava doente e coisa e tal. No meio das linhas, agulhas e fitas, ele tinha um único pacote com cinco novelos de lã cashemere. Sabe que cor? Azul Royal! Fazia eras que não me aparecia lã nessa cor, Tânia, será que ele sabia que você vinha hoje? Parece brincadeira! Parece até coisa de anjo.
Tânia, o pacote de lã muito bem guardado na sacola, paga a compra e despede-se de seu Eugênio com um beijo. Cai uma chuva fina, abre o guarda-chuva e sai da loja, cantarolando. Não vê a hora de tricotar seu cachecol de cashemere e se embrulhar no azul de São Miguel.