sábado, 26 de fevereiro de 2011

Looping


- Looping só quer dizer um movimento que se repete em círculos e não tem saída - ele explica.
- Então é looping - ela conclui - É assim que está a nossa vida.

Ele vira o rosto para a janela fechada, senta na cama. Natália abre o armário, pega a mala. Lenta, os movimentos desencontrados, não quer ir, quer que ele peça que fique, que diga que a ama, que sente sua falta. Seus pensamentos ecoam em tal volume que ele se aproxima. 
Voltam pra cama, abraçados.

Os poucos passos que cobrem essa mínima distância levam anos; é lícito querer que ele seja alguém que ele não é? E se fosse o oposto?

Cansada do real, ela quer fantasia para se entregar ao espaço de Eros.
Aí é que está o problema. Não é espaço, é tempo de Eros. Mas eles não sabem.

Ela pede que ele imagine uma cena. Nestor faz qualquer coisa por ela. Começa uma descrição vagarosa, procura imagens, palavras, um lugar nas montanhas, perto de um lago bonito, um clima ameno, fim de tarde ainda com sol, nem frio, nem calor, os dois sentados numa mesa, um grupo de amigos, jazz tocando.  Ela se impacienta: Onde é que está o sexo nessa história? Quem vai atrair quem? De que jeito?

Riem. Ele pede para ela imaginar. Ela diz que estão neste lugar mas que não tem lago nenhum, é mar, praia, está calor naquele fim de tarde, todo mundo ainda de maiô, ela se levanta da mesa, tira o shorts, dá um beijo no cangote dele e vai correndo para a água. Ele a segue, corre atrás, toca nela, a empurra de leve, entram no mar. Ele a carrega no colo, o sal tempera seus beijos, vai puxando a mulher pela água até o chalé. Caminham pela areia, rindo, ele apanha uma florzinha no jardim, entram no chalé e vão os dois juntos para a banheira; um minuto depois, ele sai da banheira, põe um CD do Fred Bongusto no aparelho de som - Tu sei cosi - era a única opção na pousada, ela explica, pega uns amendoins, queijo, azeitonas, copos, ajeita tudo no banquinho do banheiro, põe a florzinha num copo enfeitando a mesa improvisada e entra de novo na banheira, olhar moleque. Comem e bebem e se tocam em jogos mais e mais estimulantes; na cama, ela o recebe com ternura, se abre até o fundo. Natália se anima com as próprias imagens.

Começam os jogos do amor na vida real. Ela murmura em pensamentos o que gostaria de ouvir. Ele, devagar e com delicadeza, diz que não é preciso acontecer nada, que não precisa acontecer nada, estar junto já está bom.
Todo seu ser discorda. Ela quer demais se sentir mulher de novo, desmanchar-se de prazer. Ainda desta vez não consegue e começa a se doer de novo.  Desistem, abraçados.  

O silêncio se impõe e se agiganta. Como onda do mar os engolfa.
Não encontrarão o tempo de Eros enquanto estiverem em busca de espaço.
É como óleo na água.
 

 

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Luzinete Santos de Jesus - 1



Luzinete Santos de Jesus, a Nete,  trabalha conosco há quase 10 anos. Temos por ela grande estima e a maior admiração. Ela me deu de presente a história que lhes conto a seguir, em 4 capítulos.





Capítulo 1 – A viagem –

            -Vambora, Marinalva, bota as crianças no panhacum, senão ninguém chega hoje!
A mulher chama os filhos, Nete nem espera a mãe chamar, corre para o lombo da mula assim que escuta a voz do pai. Ela sempre vai no mesmo panhacum que a Cris. Catam uma caixa onde se espicham para alcançar o cesto de vime amarrado na anca da mula. No outro panhacum, vão as gêmeas, as menorzinhas da família, o pai as coloca lá dentro já olhando em outra direção, dando ordem para os meninos pegarem as trouxas que a mãe deixou no degrau da escada.  Agarram as trouxas e se enterram nos pachacuns de outra mula e ainda há mais uma mula para o resto das meninas. Marinalva e seu Gilberto seguem a pé ao lado dos nove filhos. Em alguma parte do caminho, Marinalva vai montar na mula menos carregada para aliviar a dor nos pés e nas costas. O sol fraquinho vai apontando no horizonte, o dia ainda está fresco. Seu Gilberto tem em mente uma puxada maior na primeira parte da manhã; depois das 10horas o sol quente lerdeia os animais.
Dentro dos panhacuns as crianças sacodem em estado de sonho. O dia mais esperado do ano: o dia de ver vó Maria, a sextafeira santa. Vó Maria cada ano está numa fazenda diferente. Vô Bertoso gosta de variar, termina o serviço num sítio muda para outro. Eles sempre têm casa grande com fogão de lenha e o avô vai esperar os netos na casa da sede da fazenda. Nete e Cris gostam de se abaixar dentro dos panhacuns para ver a estrada pelas frestas do vime, fica tudo quadradinho, as sombras vão balançando no andar da mula, elas vão cantando, puxando o coro. Das outras mulas, os irmãos respondem a cantoria; quem não canta vai fazendo zumzum e dando risada. Ficam imaginando como será desta vez e já vão disputando o colo da avó na hora de ouvir história. Nete começa a lembrar o dia que a avó contou quando era moça, daquele pretendente que o pai dela levou para ela conhecer:
-Lembra que ela falou que foi arrumar a cama dele e cheirava a mijo?! A criançada pulava nos cestos dando gargalhada, namorado mijão, namorado mijão!! E o vô que fugiu da cadeia e ninguém viu? É! E ele caminha no escuro sem sapato, eu vou andar descalço igual ele e vou sair na noite e vocês vão ver que eu vou achar o caminho seguindo a lua que nem ele falou!
-Vai nada, Zeca, vai ficar quietinho em casa como todo mundo, não tem nada que sair de noite na escuridão. O vô pode porque sabe das coisas, tá acostumado, você, não, só vai arranjar encrenca.
Nem responde, arquitetando um plano para escapar da mãe. Zeca era um gordinho levado da breca.

Luzinete Santos de Jesus - 2




Capitulo 2 – Sexta-feira Santa

Quando chegaram à fazenda, assim que se soltaram dos abraços da avó e das broncas do avô, foram explorar o lugar; descobriram longe da casa, um paiol atopetado de cacau seco. Já iam entrando quando o avô anunciou que aquilo estava terminantemente proibido e que, além disso, era sextafeira santa, dia de reza, que Jesus morreu.
Ah, mas isto já fazia tanto tempo...Toda vez tinha de esperar passar a sextafeira para poder brincar.
Coisa chata! - passaram a tarde toda só pensando no amanhã. De noite caiu uma chuvarada e os trovões ribombavam pela casa, fazendo tremer as janelas e apagando o fogo. Vó Maria juntou todo mundo ao pé do fogão, escolheu uma acha de lenha, ateou fogo e começou a contar a história de Jesus Cristo mas logo teve de mudar praquela do sapo esperto e a outra da maria borralheira a pedido das netas que se aboletaram no seu colo pequenino, e pediram com tanto jeito. A avó era tão miúda que os netos mais um ano lhe passavam em tamanho. A história ficava melhor a cada raio que brilhava, vó Maria era mestre em misturar os acontecimentos da sala com as histórias que contava. Mas, dos menores para os maiores, as crianças todas foram caindo no sono; a avó, junto com a história, despejou neles o chá de camomila brava.

Luzinete Santos de Jesus - 3

Capítulo 3 – Sábado de aleluia
Mal raiou o sábado de aleluia, a criançada foi correndo até o paiol. Escondidos. Disseram para a avó que iam andar por ali, brincar de esconde-esconde no cafezal. Espiaram de fora, o sol amarelava a pilha de cacau, forçaram um pouquinho a porta que, rangendo, se abriu. Eram dois metros de altura de cacau, o fruto forrava o chão, não tinha espaço vazio. Os meninos entraram primeiro. Era só por o pé na pilha para escorregar e afundar. Ai, que divertido!! As meninas tomaram coragem, o avô era muito resmungão, desmancha-prazeres, que mal podia haver? Levinhas, subiam correndo a montanha de cacau, os frutos passando entre as pernas, precisava de força para alcançar o topo. Sentavam na pilha lá em cima e deslizavam pilha abaixo às gargalhadas. Zeca observou por um momento o jeito delas e fez igual. Nos primeiros passos afundou. Tanto que sumiu. – Cadê o Zequinha? – as meninas berravam. Como cachorrinhos nadando, cavoucaram a pilha de cacau em busca do irmão, quanto mais cavoucavam mais cacau caía sobre o menino que não podia respirar. Ah, entendiam agora os cuidados do avô, e se desesperavam. Pararam de cavar.
–Vamos chamar alguém, assim não vai dar!
- Não! Se a gente deixa ele aqui, até voltar ele já morreu!
Nete encontra a mão de Zequinha lá no fundo da pilha:
-Achei ele! Achei! Segura a minha mão, Cris, e me puxa.
-Isso! Ei, Antonio, segura a minha mão, um segura a mão do outro e a gente vai puxando ele.
Labutaram por uns bons minutos, cada um que puxava ia entrando pilha adentro, foi preciso força e coragem até que o gordinho do Zeca fosse içado lá debaixo da pilha e voltasse à superfície com a cara cheia de palha de cacau, todos os buracos do corpo tapados de cacau, a cara mais desenchabida que havia no mundo. Foi uma discussão calorosa, se contavam ou não contavam e como queriam contar! Mas e o medo?! E a bronca do avô? Devagarinho foram voltando para casa. Entraram pela porta da cozinha, sujos e empoeirados, vó Maria arregalou um olho e tiveram que desembuchar. Ela prometeu não falar nada e eles prometeram se comportar. Trato fechado. Nada de brincar no paiol. Mas foi divertido demais, já tinha valido a pena. No resto do dia brincaram de esconder, de pega-pega, de subir nas árvores e malhar o Judas.

Luzinete Santos de Jesus - 4


Capítulo 4 – Cidades

Enquanto a vó Maria morou na fazenda, a família Santos se via na Semana Santa. Foram anos encantados até que ela ficou cega. Vó Maria ao invés de trazer um pé de couve para dentro de casa, trouxe uma rã amassada. Vô Bertoso concordou. Era o fim da vida na roça. Foi para o quintal, pegou um pneu velho e fabricou ele mesmo com um facão afiado um par de chinelos para andar na cidade. Foi a primeira vez que o viram calçado.
O filho foi buscar os pais para morarem na cidade, não dava mais para ficarem os velhos sozinhos na roça. Na cidade, vô Bertoso feneceu. Pegou o patuá que carregava no pescoço e deu sumiço nele. As crianças se matavam para saber o que tinha dentro do patuá do avô, ele, que era meio mágico, que escapava da cadeia, que corria mato no escuro, que rezava para os orixás. Poucos dias depois, morreu. Nete foi ficar com a vó Maria, tomar conta dela.
Era um carinho só que unia as duas, uma ensinava a outra; Nete aprendia a fazer fogo sem se queimar e a lidar com tudo da casa. A velha aprendia onde estavam a toalha e o sabonete para poder tomar banho sozinha. Aprendia a enxergar sem ver, enxergar pelo cheiro, enxergar pelo tato, enxergar pelo ouvido. Nete aprendia a enxergar a vida observando a vó Maria, a garra da vó Maria, a mansidão da vó Maria, a alegria da vó Maria.
Um dia Nete diz que vai embora para o sul, fazer a vida em São  Paulo. A avó segura o baque, engole o choro, passa a mão na cabeça, balança de um lado para o outro. Sabe que não adianta proibir. Cada um faz seu caminho. Faz a neta prometer que volta. Nete assegura, volto, sim, vóinha, volto logo.
Nunca voltou, nunca mais viu vóinha.
                                                                                                 
Quando a filha pequenina se agita na cama, sentadinha no seu vestido cor-de-rosa, dá uma risada e levanta carregando um sapinho verde numa das mãos, Nete vive uma alegria conhecida, um encantamento igualzinho ao que viveu ao lado da vó Maria.
Parece que quem voltou foi a avó.
No corpo da filha.   

           

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Barba e Pano de Chão

Sim, senhor... até que estou bem para os meus 67.
O cabelo, do jeito que está, qualquer dia desses vai dar para contar os fios, mas a pele até que ainda tem um certo frescor. Sim, senhor...
Quanta coisa você já viu, hein seu Francisco? Quanto já viveu...
E hoje tenho de entrevistar este fedelho de advogado que pensa que sabe alguma coisa. O sujeitinho pensa que pode me enrolar...
Ele ainda não viu nada.
Mas... para ser justo, parece um rapaz bem intencionado, não posso ter tanto preconceito só porque o sujeito é moço.
Bem que a Marilu tem razão, estou ficando velho, desconfiando de tudo. Escanhoar este lado, aqui embaixo do pescoço, com cuidado... esperar que ele diga o que pretende, não vou abrir o jogo; depois, conforme for, se as exigências forem razoáveis... Quero ver se o cara tem garra, se tem conversa. Cursos, eles têm, estes moleques, mas manha, isto que eu quero ver. Chego em 5 mil, nem mais um tostão. Engraçado, parece que vejo meu pai no espelho, a mesma expressão; desconfiado quando meus colegas o orientavam nos negócios. Velho é tudo igual, vai ver. Não posso me esquecer dos pelos nas orelhas, a Marilu fica louca quando eu deixo cabelos nas orelhas... ah, a  Marilu... Tá na hora de a gente viajar de novo, preciso levar a Marilu conhecer o Atacama. Enquanto a gente ainda pode andar. Contrato o fedelho e me vou com a Marilu. Agora, o lado direito, devagar, ãh, ãh, parece bom. O duro é ter de por óculos para fazer a barba. E estes já estão falhando. Cortar os fios das sobrancelhas, nunca vi como crescem estes danados. Um pouco de colonia massageando as bochechas e estou pronto.
Dona Jacira, pode vir limpar o banheiro, já vou sair.


Lá está o seu Francisco no banheiro e eu que espere. Claro, o que você queria? Que ele saísse e dissesse: pronto, dona Jacira, pode limpar o banheiro, eu faço a barba depois, me desculpe, devia ter acordado mais cedo porque sei que a senhora tem seu método, chega às sete, traz pão fresco da padaria, lava a roupa, põe o café na mesa e limpa os banheiros. Só você mesmo, Jacira, para querer que o patrão facilite as coisa para você. Você é que tem de facilitar as coisa para eles e para você mesma, cê é burra! A dona Marilu já falou que isto tem de mudar, que é para limpar as salas antes, para dar tempo do seu Francisco desocupar a área mas acostumei assim e sempre me esqueço; antes ele saía tão cedo que eu nem encontrava ele, agora fico aqui espanando este quadro que já está mais que espanado até o seu Francisco sair. Ah, se eu fosse essa dama do quadro, ia andar nesse caminho lindo, com esse riozinho, que será que foi feito do meu Aldair?

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Domingo em Sampa

Hoje minha alma vai dormir mais humana.
Os artistas me levaram pela mão.
Nem saí da cidade e visitei Florença e florestas, carreguei mármore em lombo de bois, puxei um navio ao caminhar pelos sulcos das gravuras de Carlos Oswald.
Perdi-me nos papéis, letras e traços da mente delicada de Mira Schendel.


Thomaz Farkas me pôs em silêncio. 

Mágicos flashes. Sombras falantes.

De quebra, eis que surge altiva Melanie Farkas e posa para nós. Ao lado da foto tirada pelo marido, setenta anos passados. Segue misterioso o olhar da belíssima mulher.


Há momentos em que não é bom falar, quebra a magia.  Assim saí do cinema depois de beber O Concerto. Vá.

cartaz de São Paulo por Jimmy Leroy ; Foto de Melanie Farkas por Remo A. Pierri, Carlos Oswald no Conjunto Nacional, Mira Schendel no IAC da Maria Antonia; Thomaz Farkas no IMS, pça Buenos Ayres; o Concerto no Reserva Cultural

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Tomie


Nem imaginam a mágica que viverão ao entrar no espaço de Tomie. A forma perfeita os captura.

O tempo se estende em anos-luz. Vermelhos emergem do negro, o negro retoma a superfície e volta o vermelho em seguida, diferente, transformado em contorno; misteriosamente o estático se movimenta.

Um olhar mais abrangente vê pousar sobre a magnífica textura do branco, a gigantesca borboleta. Homem e mulher voam em suas asas até o fundo do mar que aparece em corais mais adiante, quase podem tocá-los. Volteiam em camadas cósmicas, sobrevoam um leito de piscina verde que revela ladrilhos miúdos. Passeiam sobre o roxo e o amarelo. Retomam o vermelho e o negro.

Seus olhos são atraídos a cada volta para a esfera envolta no vibrante azul royal do Grande Arcanjo São Miguel que flutua no éter. Estão certos de que a Terra é protegida pelo anjo.

Tudo volta sobre si mesmo, reconta verdades num continuum. Desfrutam das cores que iluminam a dança. Tudo acaba e recomeça. Aos 95, a sábia Tomie se deixa envolver pelo círculo e os arrebata.