sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Feira



Na beirada do sono me sentei e armei a barraquinha. Estendi o toldo azul, coitado, já com manchas, desbotado. Peguei os cavaletes, puxei a prancha de dentro do caminhão. Cobri-a com a toalha estrelada e fui tirando do pequeno baú, o gato angorá, a boneca que fala, o cachorrinho, o espelho d’água, a lua cheia. Depois vieram o dia na praia, o pé da montanha, o par de skis, a roupa nova, o convite, o cavaquinho. O vaso de flor do campo forçou a saída, empurrando o guarda-tempestades. O lenço branco, o anel de noivado, o berço do filho, o armário arrumado, o emprego, o pai, tudo ficou exposto sobre a mesa.
Ao final, saquei da bolsa a plaquinha dourada que minha avó me bordou: ‘VENDEM-SE SONHOS”
Pendurei no ganchinho e esperei.

Logo formou-se a fila.
O primeiro freguês pegou o par de skis e foi para o Colorado com a namorada.
O segundo procurava um presente para a sobrinha que tinha mudado de cidade. Levou o cachorrinho. E de quebra, um convite de festa de aniversário.
Veio em seguida a morena com pano na cabeça: levou o berço do filho. Antes de sair, agarrou o armário arrumado e botou na bolsa.
O velho quis a casinha ao pé da montanha; a velha preferiu o dia na praia rodeada dos netos. Levou para cada um, um guarda-tempestades, assustada que está com o que dizem por aí.
A garotinha do cabelo enrolado não teve dúvidas sobre a boneca; pensou um pouco antes de se apropriar da lua cheia e do espelho d’água. Saiu aos pulos.
O gato angorá foi para o menino que usava óculos. Passou um tempo acariciando o cavaquinho. Acabou deixando na mesa.
O rapaz gordo de terno surrado pegou o emprego; a moça magrinha, esta, sim, se encantou com o cavaquinho. O rapaz de terno voltou para pegar o anel de noivado e a mocinha quis também a roupa nova.
Já eram quatro da madrugada quando apareceram os gêmeos em busca do pai e a jovem estudante que me fez procurar até encontrar a cadeira de rodas que eu havia esquecido em algum canto da carreta. Disse que era para a avó, que a tinha criado. Aproveitei e lhe dei o vaso de flor do campo. Moça simpática!
A aurora trouxe o homem arrependido atrás de um lenço branco.
Nada mais vendi naquela noite. Desmontei a barraquinha, subi no caminhão e voei para a minha nuvem. 
Imagem da Internet : pintura de Aracy de Caicó 








sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Teia



Em meu caminho
No silêncio desta manhã tardia
Entre árvores
Brilha a teia
Barreira de tecido tênue
Transparência
                        E te vejo
                        Do outro lado
                        E desejo
                                          Sem coragem
                                                                    Cortar
                                                                    A trama cor de água
                                                                    Salpicada de arco-íris

FOTO DA INTERNET

Descobertas

foto: Remo A.Pierri

- Má, Você não sabe o que eu descobri: a gente, todos nós, viemos da atmosfera.!
- Que??
- Eu só descobri ontem porque o meu vô me explicou. É que eu tinha perguntado o que era polução e a Sandra, ela disse que polução é um tal líquido cheio de espermatozóides, que são uns bichinhos que fazem as pessoas. Mas aí meu avô explicou que a palavra é poluição, tem um i no meio e quer dizer atmosfera, então eu entendi: a gente, as pessoas, nós viemos da atmosfera, isto é, do ar!
- Pára! Você não entendeu nada! Não é nada disso!
- Não??
- Todo dia tem alguém que fala da poluição. É só o que a gente ouve na escola. Você não presta atenção??? As pessoas não vieram da atmosfera, nada, Bia! Como você é burra! Cansei de ver na fazenda os bichos se acasalarem, o touro cobrir a vaca, o garanhão cobrir a égua.
- Cobrir?!!
- É. Cobrir. Não tem nada a ver com inverno e nem com cobertor. Cobrir é quando o macho monta em cima da fêmea e daí os tais espermatozóides fogem dele e vão parar dentro da fêmea e aí é que se formam os bebês.
- Ahhhh...
- Com gente é a mesma coisa. Seu pai e o meu cobriram as nossas mães e a gente nasceu.
- Ahhhhh...CREDO!!!! kkkkkkkk

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Espelho

Vejo no espelho
A rainha
Olhos claros
Cílios longos
Lábios rubros
Queixo duro
Sobrancelhas arqueadas
Cheias
Bem desenhadas
O rosto limpo
Perfeito
Se enfeita
Em cabelos fartos
Caem dos lados
Anéis
Enchem o cristal
Emolduram
Ampliam toda a figura
Brilha a mulher
No reflexo
A boca abre um sorriso
O dia enche a janela


Nas margens frias do encanto
Surge pequena, discreta
A surpresa
O desaforo

Num instante tudo vira
A paisagem se transforma
Some a mulher altaneira
Some o sorriso
Entra a raiva
Dos olhos saltam as águas
Entra a montanha deserta
O pico rochoso
O nó doloroso

Nascida de madrugada
A verruga inesperada

Franze a testa
A feiticeira
Como um trovão vem o grito
Cerra os dentes
Fecha os punhos

O espelho se estilhaça
Cai a noite na janela


sábado, 4 de fevereiro de 2012

Casa














A almofada de flores
A cesta cheia de pão
O pai na ponta da mesa
A mãe, o brinco, a tristeza
A gangorra
O garrafão
Deixou tudo
Foi sozinho
Foi em busca de outro ninho
Sem adeus
Explicação