sexta-feira, 25 de maio de 2012

Eita sorte!



O marcador de combustível estava quebrado. O carro era um Dodge 69. Seu Inácio enchia o tanque a cada 100km de modo que nunca ficava na mão. Depois de dez anos de trabalho em São Paulo, ele conseguiu se dar um mês de férias para levar a mãe de volta às montanhas de Minas, rever a família. A velhota sonhou com esta viagem, não parava de falar e se lembrar dos causos, dos biscoitos, do arraial, da fogueira, do toicinho, da festa de São João, do abate dos porcos, do dia que choveu sangue; seu Inácio dava trela que ele também tinha saudade.




A estrada estreitou ao ladear longos quilômetros de pastos, um rebanho ali, outro acolá. Não se via viv’alma. Estica, estica, estica mas foi aí que o carro parou. Seu Inácio já preparava a mãe para esperar enquanto ele ia atrás de combustível quando, eita sorte, o retrovisor o presenteia com um caminhão carregado de bananas. O caminhoneiro pára, seu Inácio fica sabendo que, por sorte, a 15 km dali há um posto de serviço. Volto logo, mãe!
Ao chegar ao posto, o caminhoneiro encontra um seu colega que voltava pela mesma estrada. Sorte! E veio seu Inácio de carona de volta com seu plástico estufado dos 5 litros de gasolina. Rapidamente está de novo no guidão do Dodge. Agora cantarolam modinhas em duo. É tarde, eu já vou indo, eu preciso ir me embora, té amanhã, quem anda com Deus não tem medo de assombração, eu ando com Jesus Cristo no meu coração...
Depois de algumas horas, o carro começa a tossir, a noite vai chegando. Assim que a ladeira começa, ele pára de vez. Ao longe, um ponto negro, um homem? Eita! É só desbrecar que o santo ajuda. O carro vai descendo devagar até parar justamente ao lado de um lavrador apoiado no cabo da enxada. Seu Inácio sorri sem graça e o homem diz é o giglê. Como? É o  giglê , aposto que é o  giglê que entupiu. Mas o senhor entende de carro? Mai  nem! Fui mecânico por 40 anos, agora me aposentei e voltei pra roça! Eita sorte!! O homem abre o capô, fuça aqui e ali, tira o giglê, assopra, põe de volta e o carro pega de novo. 
Chegaram aquela noite mesmo em Dores de Campos, o céu era esplendor. Na casa da Nhá Dita jantaram uma sopa de mandioca com paio com gosto de estou em casa!


fotos do Remo


sábado, 19 de maio de 2012

O avô e as netas

Sem levantar, puxou a cadeirinha baixa que ficava à beira da cama. Empurrou o corpo até a cadeira e desabou sobre ela. A madeira rangeu, ele quase pensou que aquela companheira de longa data iria se quebrar com seu peso de elefante cansado.
Abriu a gaveta do criado-mudo, puxou a lixa. Examinou-a com cuidado testando com a ponta dos dedos se ainda tinha “fio”. Tinha. Esticou o pé descalço e tentou alcançá-lo por sobre a barriga incômoda. Impossível. Pôs o pé sobre a cama procurando um ângulo mais favorável; o braço tinha encurtado, só chegava até o joelho. Olhou a unha do dedão que crescera mais de um lado que do outro e andava furando as meias. Sentiu-se tão velho, tão velho. Deu um suspiro e, em seguida, um berro para Jandira.
- Senhor? – respondeu ela de longe. – Que que aconteceu?
- A lixa, Jandira. Preciso que você me lixe a unha do dedão! Vem cá, por favor!
- Tô indo, seu Ramos, um instantinho.
Sentado na cadeirinha quase de cócoras, seu Ramos, sua barriga e a lixa esperaram por mais de uma hora até que Jandira apareceu na porta.
- Prontinho, seu Ramos. Que que o senhor quer?
- Não sei, Jandira, nem lembro mais. Me ajuda a levantar desta cadeira. Quero tomar banho, daqui a pouco chegam minhas netas. Hoje faz um ano que a Nena morreu.





A tigela tem cor de areia molhada. Dentro dela a massa amarela. Viscosa. Pão – de - ló. Bolinhas de sabão que rebentam pelo ar. O dedo da menina corre devagar, passa pela borda. O tapa vem, o dedo se recolhe. A massa é derrubada na assadeira. De prata se tinge de ouro claro. Tigela esquecida sobre a pia chama o dedo que se envolve em capa grossa. Sobe à boca que o lambe em riso. Volta à tigela e passeia. Deixa um rastro como de bicicleta à beira-mar. Boca, tigela, boca, tigela. E o dedo captura o finzinho da massa. A tigela está limpa e brilhosa. A menina é risada gostosa.




imagens da internet






sexta-feira, 11 de maio de 2012

Partilhar o pão

É fim de tarde, o sol se despede deixando seus longos brilhos sobre o chão de tijolos da varanda.
Os pais, sentados na ponta das cadeiras de lona listrada, ao lado da mesinha redonda, rezam a missa do dia. Com as mãos, a mãe corta do filão um naco, lambuza na manteiga fresca e passa o pão no pires cheio de açúcar.
As crianças esperam cada uma o seu quinhão enquanto conversam sobre as fileiras de formigas que acharam no quintal, que fizeram estradas por todo o lado, e que, quando se encontram, as formigas se cumprimentam, reparou? Elas param e encostam a cabecinha uma na outra e como são fortes, mãe, cê tem que ver! Elas carregam umas folhas muito mais grandes do que elas. 
O pai diz que vai botar veneno, as crianças se rebelam. 
A noite chega rápido. A família se recolhe.
No chão da varanda, as migalhas duram nada. Também as galinhas de penas douradas se atropelam embaixo da mesinha e colhem a parte que lhes toca nesta celebração.


imagem da internet

Quase haikais de outono


Remo


A folha seca
Encantada
Rodopia ao sabor do vento

As outras folhas do arbusto
No seu balanço contido
Contemplam-na com inveja

                                                                                                                                 

Andar
Sobre a espinha dorsal da grande folha caminha a borboleta. Como bailarina, abre as asas em busca de equilíbrio. Faz o percurso três vezes. 
Na quarta, arrisca-se pelas ranhuras laterais até que se lança sobre o chão úmido. Continua a andar. 
A borboleta não quer mais voar.


pássaro de topete - internet

                           Corpo preto
Crista branca
Canta um roque sertanejo
O pássaro que hoje vejo

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Foi raiva?

Dia seguinte, Dona Ester, atrás de ovos no galinheiro, vislumbra Lidinha lavando roupa no tanque. Observa-a de perfil a esfregar uns panos. Barriga grande. De novo?! Não é possível, esta moleca não tem nem 18 anos e já com 3 filhos para criar! Para quem criar? Ela ou a Rosa? A raiva vai subindo, a fúria contida vem como explosão: Sai daqui hoje mesmo, Lidinha. Pega suas tralhas, seus filhos e some da minha vida, desaparece! Chispa daqui, não vê o que faz com seus pais, com você mesma, sua louca, sem juízo, sem vergonha!

Rosa escuta os berros da patroa, sai porteira afora para buscar o neto na escola. Fazia isto todas as tardes, não podia se atrasar. Todo mundo sabia que o moleque era levado, se demorasse ele aprontava. Aquela era a hora do seu prazer. Voltaria conversando com o menino pela estrada, ele sempre falante contando mil histórias. Ela só pensava no momento em que o abraçaria e ele lhe daria aquele beijo lambuzado.

Já vinham voltando quando ela caiu. Do nada. O garoto ficou sozinho na estrada, sentado ao lado da avó, esperando que ela se levantasse. Anoiteceu. 


*********************************************************

Ninguém sabia da Rosa, nem do moleque. Lidinha pôs as mãos na cabeça que já estava fervendo com a bronca da dona Ester. Onde está meu filho? Eles não voltaram da escola? Ninguém tinha visto nada. Sabia de nada.

Antenor, a rotina revirada, estava atordoado. Fez o caminho da escola, a cabeça girando, os pensamentos todos se amontoando feito batata em saco. À frente, um vulto. O grito Vô!!! E a corrida desesperada, a vó caiu, não quer levantar, não quer falar comigo e vem um choro inundado como se tivessem aberto as comportas da represa do medo. 

Antenor carrega o garoto e o abraço contém no carinho os pequenos ombros que soluçam. Os lábios tocam sua cabeça suada. Ajoelha-se perto de Rosa. Sobe um grunhido do meio do peito, um grito contido. Desata, ele também, no choro mais profundo, o velho e o menino, agarrados, despejando um rio sobre o colo inerte e frio da mulher. 

imagem da internet estrela-nasa-morte

...desde que as filhas ficaram grávidas, muito meninas, a mulher começou a adoecer...