sexta-feira, 27 de julho de 2012

O tempo em dois tempos




O tempo em dois tempos


Tempo é o tecido da vida.
Antonio Cândido, aos 94.

Primeiro movimento
Sobre a terra Maria jogou as sementes. Uma terra de soluços, pedregulhos, torrões de argila. As gotas de chuva e rega se enfiam no solo árido; chega o soro às plantas. O tempo passa, as sementes se rasgam ao sol e desabrocham num verde clarinho de folha recém nascida. Nascem as folhas neste berço, na terra seca. E no tempo tomam forma, tomam força e se erguem. Pequenas catedrais.

O alimento estaria garantido não fosse a chuva, o granizo, não fosse a neve nunca esperada, não fosse o frio.

Maria decidiu partir. Sem hóstia, sem alimento, a pressa, a pressa, a fuga. 
Daria tempo de calçar os sapatos?



Segundo movimento
Cidade grande.
Tempo é o que ela perde nos engarrafamentos, nas filas. O tempo come sua sede de estar com os outros, de ver brotar as sementes. 



Nas águas do tempo, Maria é hoje, bolha em ebulição.




Ah, desfrutar a calma do tempo...
Houve tempo em que havia calma, Maria. 

sábado, 21 de julho de 2012

Cadete




A excitação transbordava em seu corpo, ia rever o pai. Mal percebeu a mãe lhe entregando à aeromoça desfiando uma infinidade de conselhos e lembretes. A identificação os corredores o cheiro da aeronave as poltronas as janelinhas os motores as hélices as aeromoças os uniformes as bandejinhas os maleiros os comandantes os autofalantes as vozes as luzes a velocidade o frio na barriga o impulso o voo as nuvens o chão de formiguinha as nuvens o sol o azul os carrinhos as bandejas  os refrigerantes os lanchinhos os sorrisos a calma as sacudidelas o cinto a poltrona a descida o frio na barriga o solavanco a corrida o barulho o pouso ahhh.  O ar finalmente chega aos pulmões...
Conforme crescia foi jogador de futebol, biólogo, médico, aventureiro.
No fundo, desde a primeira viagem, voar virou fascinação. Para ser piloto estudou, ralou dias e noites, deixou programas e baladas, isolou-se dos amigos, ansiedade, estudou, estudou, estudou, entrou na academia da força aérea  e ... ralou.
Ainda mais.
Menos de 3 minutos fazer a cama, roupas brancas lavar passar, varrer quarto, lavar banheiro, disciplina, obedecer sem argumentar, a hierarquia, aulas de pé, resolver problemas, estudar, cálculos, medidas, profissionalismo, obedecer, liderança, estudar, trabalhar em equipe, obstáculos, o peso, a trave, a cesta, a bola, a rede, a raia, as cordas, o tempo, a lealdade, o dever, a honra, correr, nadar, saltar, dormir ao relento, a coragem, bandeira, hinos, o civismo, avaliação, erro de um, punição para todos, um milhão de flexões, proibido sair, cozinha, acordar no meio da noite, prontidão, flexões, ética, marchar, obedecer, botina brilhando, grito de guerra, patriotismo, ensaio, ensaio, ensaio. Sentido! Espadim. 



Nada de voar.
Tudo é ensaio.
Longo é o caminho para alcançar o sonho de Ícaro.


Fotos 1 e 3 Internet
Fotos 2 e 4 Remo A. Pierri
Pirassununga SP / Espadim 06/06/2012

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Highraff e Amsterdã


Em espiral eleva-se a grua verde abacate. O rapaz espera por este momento desde que se viu a pintar os primeiros muros proibidos. Um dia teria a sorte a chance a oportunidade a oferta de pintar a parede de um prédio. Inteira. Só ele e seus sprays. Só ele e sua alma lançando-se em formas que brotam de seus braços impulsionados pelo mestre, como estilingues. Nunca sabe o que vai pintar. A exigência única é colocar-se a serviço. E ao lançar o primeiro jato -geralmente uma linha curva- outras se seguem, abrindo caminho, pedindo continuidade. As cores buscam passagem, querem dar-se a conhecer. Rodopiam em círculos gigantes que escondem uma miríade de pequenos outros. As madrugadas iluminadas pelo grande holofote sopram-lhe as pinceladas, o vento noturno trabalha em sintonia. E a superfície triste de cinza, cimento e concreto vai desvelando o sol e a roda da vida, os polígonos crescem em três dimensões escapando da parede; verdes, azuis e rosas invadem a cidade colorindo a rua e seus passantes.
Na boca do artista, a saliva tem gosto de alegria. A alegria expande seu peito e alarga o seu coração.


fotos de highraff fisgadas do facebook pelo Remo

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Minha mãe e A louca de Albano

minha mãe era uma paineira


- Mãe, recita a Louca de Albano?
- Ah, de novo?
- É, eu já tô quase decorando, falta só o finalzinho...Vai, faz favor!
O som da máquina de costura dava o ritmo da poesia; o corpo da mãe balançava para frente e para trás. Os pés apoiados no estribo da máquina eram tudo o que a menina via do ângulo em que estava, sentada no tapete, brincando com suas bonecas e ouvindo, maravilhada, a trágica história. Repetia baixinho as palavras declamadas pela mãe.


" - Anda cá, meu filho, escuta, és amigo de tua mãe?
   - Oh, minha mãe, que pergunta!
   - Basta, meu filho, pois bem. Vai ver a velha Vicenza, o amor que seu filho lhe tem. Faz vinte anos que teu pai morreu a golpes deste ferro por meu mal e que devias vingá-lo, fiz uma jura fatal.
   - Uma jura, mãe santíssima! Oh, minha mãe, que jurou?
   - Jurei que com este ferro que ferrugem se tornou, tu, meu filho, matarias, este que a teu pai matou. Matas?
   - Mato, aqui o juro.
   - Matas? Seja quem for? Ainda que a vingança te roube ao peito um amor?
   - Ainda assim.
   - É Ricardo, o matador.
   - Ricardo, pai de Maria? Oh, minha mãe, perdoai...
   - Filho ingrato! Pela amante o pai esquece. Vai. Cumpre a jura ou sê maldito se tu não vingas teu pai.
Nesta noite, tinto em sangue, com os cabelos pelo ar, o assassino de Ricardo foi aos pés da mãe lançar, o ferro com que jurara o pai da morte vingar. Sorria a velha contente abraçando o vingador quando, súbito, aparece, de Albano a cândida flor:
   - Paulo, meu Paulo, vingança! Perdi meu pai, não o vês por estas lágrimas sentidas que aqui derramo a teus pés?..."
Lalalalalalalalalalalala....


- Ah, mãe, como é que acaba? Você sempre pára neste pedaço...
- Não sei, já te disse, guria, não consigo me lembrar...Só sei que a Maria fica louca quando vê que o namorado tinha matado o pai dela.
- É por isto que chama A Louca de Albano, né?
- É.
- Já tinha entendido...mas eu queria tanto saber o final...
- Vá, vá brincar. Deixa eu acabar estes enxovaizinhos de uma vez, preciso entregar tudo amanhã pra Sinhazinha.
- Matas? Matas, seja quem for? Mato, aquiojuro! - repetia a menina encantada com o som das palavras, com a trama que formavam. Neste mesmo ritmo, seguia embalando as bonecas. Estas não entendiam nada dos caminhos da vingança; a menina tampouco. O mágico era tentar repetir junto com mãe, sem perder o ritmo, cada frase, cada palavra e, a cada dia, entender um pouquinho melhor o sentido da história.




imagens da internet - texto publicado no meu livro O Flamboyant, ed Schoba, 2010.





sexta-feira, 29 de junho de 2012

São Pedro, o pato e a lua


O sol já tinha sumido e, do galho alto da árvore, o pato vislumbrava a lua ensaiando para entrar em cena. Ele também queria festa. Embaixo do flamboyant enfeitado com bandeirinhas, a mesa de doces e a cadeira do sanfoneiro. Foi o homem chegar e esticar o fole da sanfona que o pato se pintou de prata e começou a dançar...


                                         O dançarino da lua - óleo de Manuela Baptista



Erik

Parou no Viveiro dos Pássaros e não deu palavra. Estava muito ocupado.
Na volta, sentou-se à mesa...

desenhos de Erik aos 9 anos

Passarinho cantou
De dentro de uma gaiola
Cantaria melhor 
Se fosse do lado de fora...

Hoje ele é moço e é músico.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Papeando com o carteiro




Outro dia, lá no parque, conheci o seu Marconi. Que figura, olha que prosa, o homem fala rimando, vou dividir com vocês...


O seu Antonio me espera sentadinho no degrau. Tão sozinho, pouco fala, me dá um sorriso amistoso, gosto dele, ele é legal! Depois vem dona Jobelina, aquela que varre o quintal. Arde sempre um comentário com a boca cheia de riso uns safados estes políticos, Lula e Maluf, que que é isto?Onde a gente vai parar? No fundo tem esperança que as coisas vão melhorar.
Para o 303, apenas uma revista, dona Rosa, uma viúva, é boa pra mim, é bacana. Para o 125 tem sempre um maço gordo de contas, que gente cheia da grana! O 67 tem carta de envelope perfumado, só pode ser pro roqueiro de cabelo arrepiado. O 25 tem conta sempre de banco estrangeiro, é o seu Breugurten, o careca, que fala muito engraçado. 
Vou entregando envelopes, caixinhas, coisas pequenas: Lembro o dia que eu passava na Rua do Lava-pés e dei ao seu Eduardo, o envelope vermelho. O homem abriu depressa e quase teve um chilique: tinha sido contemplado com o primeiro lugar no concurso literário para o qual nem quis entrar. A mulher que insistiu, me contou com alegria, agora ia viajar, podia rever a filha.
Gosto da gata do Nelson, no 486, que toma sol na floreira. Sempre faz uma firula, deve ser namoradeira. Bato papo com seu Ângelo, o que adora futebol. Toma conta da netinha pra filha ir trabalhar. O Corinthians ganhou ontem, mesmo só tendo empatado. Vai Colintias diz Laurinha, só dois anos, conquistada!
Os cachorros do 1005, aqueles de cara amassada, que estão sempre dormindo, abrem uns olhos ladinos quando me escutam chegar, botam a pata na cara, continuam a descansar. 
Os do 530 gostam de me lamber, eu deixo, claro que eu deixo, que mal isto há de fazer? O do 1647 é feio e mal-humorado, se chama Miséria, o coitado. Senta, Miséria! Entra, Miséria! Passa, Miséria!!
Mas triste foi o que veio da nora do seu José, um telegrama curtinho, duas únicas palavras, Anita morreu. O velho caiu num choro, eu tive de lhe ajudar, levar pra dentro, dar água, precisei lhe acalmar: era a irmã com quem ele há anos tinha brigado, nunca mais tinham falado, foi por causa de ciúme, ciumeira, coisa boba. Que estúpido! dizia ele, que besteira a gente faz, agora ela foi embora, nunca mais vou lhe abraçar! Seu Marconi, se eu pudesse, ah...

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Planos, planos





Ângela e Raul estão casados há mais de 50 anos. Apaixonados, ficam de mãos dadas, trocam olhares, falam coisas como estava aqui olhando a Ângela e me lembrei daquela frase que se dizia no meu tempo, ela é uma uva! Ah, ela é uma uva até hoje!
-Benzãozinho, que que você disse?... Deixa pra lá, vou fazer seu doce para o almoço. 

Casaram-se numa linda igreja e fizeram uma festa memorável. As fotos do álbum de casamento, volta e meia, aparecem nas rodas de conversa, quando contam histórias do passado. As histórias da Ângela são de fazer a pessoa se escangalhar de rir ou chorar de tanta emoção. 

Ela pega a máquina de calcular para digitar o número de telefone da farmácia; abre a janela e fala alô?!   Ah, Angelinela, Nenela, que cabeça! Ao lado disto, se põe bonita para a feira, para o trabalho ou para o teatro, tem a casa arrumada no detalhe, nas flores frescas, na toalha da mesa. Não deixa faltar uma palavra de afeto para o vizinho de rua, para o dono da venda. 
Ela é do tipo que despeja amor e riso como chuva de uma sempre primavera. 
Ele é do tipo sossegado, aventureiro, arredio à cidade grande; por profissão conhecedor do mato, da natureza, dos bichos, já se curou de 9 maleitas, nada o tira do sério. 

Amando-se como se amam por muitos anos viveram a se dizer até a volta, se cuida, nos vemos no Natal... Trabalharam muito duro os dois para construir a vida, criar os filhos.

Para as Bodas de Ouro, sonharam anos seguidos. O sonho era assim: A capela da PUC de São Paulo, toda enfeitada, ela estaria vestida em lilás, muito elegante, e entraria na nave pelos braços do neto Rafael, um rapaz muito lindo. No altar, estaria o marido ladeado pelos três filhos, noras e os outros netos que, com certeza, já teriam. A Ave Maria de Gounod soaria quando ela e Rafael - que jamais teria morrido naquele horrível desastre de automóvel - entrassem pelo tapete da nave principal, olhando os convidados, os amigos, os parentes, sorrindo para todos. Na cerimônia, o marido a presentearia com uma aliança de brilhantes e, ao final, haveria uma festa.

A vida nem sempre segue nossos planos.
Nosso é apenas o presente.

No dia das bodas foram à missa na capela do convento das franciscanas, no bairro de São Francisco, em São Sebastião, cidade do litoral. 


Presentes apenas o casal e os três filhos. Nem uma nora, nem um neto. Sentaram-se juntos, do lado esquerdo da igreja. Do lado direito, uma família de gente simples rezava pelo filho que morrera atropelado. O padre veio lhes perguntar o motivo da presença ali. Explicaram que eram bodas de ouro. Foram efusivamente felicitados. Fez o mesmo com a família ao lado e ofereceu-lhes seu conforto. A missa foi singela. Aqueceram-lhes as palavras do padre. Com um sentimento de união, caminharam para a saída igreja. Do nada, entra pela nave, um garotinho desconhecido. Sorriso de orelha a orelha, ele abraça a noiva. Inunda-a de ternura. Como teria feito o neto querido. Bençãos do céu.


fotos  em PB do Studio Perlaky - 1954 - restauradas pelo Remo
fotos de S.  Sebastião 2012 - Remo


sexta-feira, 8 de junho de 2012

O tédio virou remédio




Era uma noite molhada,
Choviam do céu fios de lã
Caíto e Bumba sentados
Repetem entediados
-Nossa, que noite! Que chato!

Querem achar na penumbra
Qualquer coisa pra fazer
Para esta noite profunda
Fazer cócegas
Acontecer

Bumba estica até a janela
Mia, muge, chama, grita
Caíto escuta o recado
Pula o sofá estrelado
Pára na sombra do gato

Lançam garras vidro afora
Vão pescar
Os fios de lã
Enrolam novelos chovidos
Riem até de manhã

fotos da internet

sexta-feira, 1 de junho de 2012

A primeira vez




Barba, óculos de aro escuro, pernas, axilas, braços peludos, o rapaz pede sexo. Dia após dia, semana após semana.

A sala da casa se abre para um espetáculo de dança. Os ouvidos da platéia se enchem de música, os corpos balançam imperceptivelmente enquanto aguardam as bailarinas. O som de tambores e cítaras anuncia odaliscas. A morena, a loura, a oriental, a negra. Balançam ancas, rodopiam em sorrisos enquanto o ar se impregna de perfume na fumaça de incenso. Devagar se despem dos sete véus e suas mãos constroem, com panos de sete cores, sucessivos arco-íris que tomam os ares e deixam o moço sem ar. A boca do rapaz se abre; dos olhos claros chamas de fogo se lançam, o membro entesa. As mãos suam, o corpo treme. No aconchego do sofá, um espasmo; a cabeça gira brusca para um lado e encontra o espaldar macio.




Deitado num solo de areia dura e amarela tem à frente dos olhos os segredos da moça oriental. Estende a mão, toca-a, os dedos roçam os pelos púbicos, desajeitados, procuram a entrada. Sente o cheiro da mulher, quer entrar; ela se vira, é um gato, fica cara a cara com ele. Tira-lhe os óculos e acaricia-lhe o rosto em muitos beijos suaves; dirige-lhe a mão para a abertura da caverna e deixa que os dedos a penetrem. Busca–lhe o membro e, terna, o beija. Úmida, senta-se sobre ele e ondula ao rítmo do tambor longínquo. Foi assim, no sonho, que aconteceu.




sexta-feira, 25 de maio de 2012

Eita sorte!



O marcador de combustível estava quebrado. O carro era um Dodge 69. Seu Inácio enchia o tanque a cada 100km de modo que nunca ficava na mão. Depois de dez anos de trabalho em São Paulo, ele conseguiu se dar um mês de férias para levar a mãe de volta às montanhas de Minas, rever a família. A velhota sonhou com esta viagem, não parava de falar e se lembrar dos causos, dos biscoitos, do arraial, da fogueira, do toicinho, da festa de São João, do abate dos porcos, do dia que choveu sangue; seu Inácio dava trela que ele também tinha saudade.




A estrada estreitou ao ladear longos quilômetros de pastos, um rebanho ali, outro acolá. Não se via viv’alma. Estica, estica, estica mas foi aí que o carro parou. Seu Inácio já preparava a mãe para esperar enquanto ele ia atrás de combustível quando, eita sorte, o retrovisor o presenteia com um caminhão carregado de bananas. O caminhoneiro pára, seu Inácio fica sabendo que, por sorte, a 15 km dali há um posto de serviço. Volto logo, mãe!
Ao chegar ao posto, o caminhoneiro encontra um seu colega que voltava pela mesma estrada. Sorte! E veio seu Inácio de carona de volta com seu plástico estufado dos 5 litros de gasolina. Rapidamente está de novo no guidão do Dodge. Agora cantarolam modinhas em duo. É tarde, eu já vou indo, eu preciso ir me embora, té amanhã, quem anda com Deus não tem medo de assombração, eu ando com Jesus Cristo no meu coração...
Depois de algumas horas, o carro começa a tossir, a noite vai chegando. Assim que a ladeira começa, ele pára de vez. Ao longe, um ponto negro, um homem? Eita! É só desbrecar que o santo ajuda. O carro vai descendo devagar até parar justamente ao lado de um lavrador apoiado no cabo da enxada. Seu Inácio sorri sem graça e o homem diz é o giglê. Como? É o  giglê , aposto que é o  giglê que entupiu. Mas o senhor entende de carro? Mai  nem! Fui mecânico por 40 anos, agora me aposentei e voltei pra roça! Eita sorte!! O homem abre o capô, fuça aqui e ali, tira o giglê, assopra, põe de volta e o carro pega de novo. 
Chegaram aquela noite mesmo em Dores de Campos, o céu era esplendor. Na casa da Nhá Dita jantaram uma sopa de mandioca com paio com gosto de estou em casa!


fotos do Remo


sábado, 19 de maio de 2012

O avô e as netas

Sem levantar, puxou a cadeirinha baixa que ficava à beira da cama. Empurrou o corpo até a cadeira e desabou sobre ela. A madeira rangeu, ele quase pensou que aquela companheira de longa data iria se quebrar com seu peso de elefante cansado.
Abriu a gaveta do criado-mudo, puxou a lixa. Examinou-a com cuidado testando com a ponta dos dedos se ainda tinha “fio”. Tinha. Esticou o pé descalço e tentou alcançá-lo por sobre a barriga incômoda. Impossível. Pôs o pé sobre a cama procurando um ângulo mais favorável; o braço tinha encurtado, só chegava até o joelho. Olhou a unha do dedão que crescera mais de um lado que do outro e andava furando as meias. Sentiu-se tão velho, tão velho. Deu um suspiro e, em seguida, um berro para Jandira.
- Senhor? – respondeu ela de longe. – Que que aconteceu?
- A lixa, Jandira. Preciso que você me lixe a unha do dedão! Vem cá, por favor!
- Tô indo, seu Ramos, um instantinho.
Sentado na cadeirinha quase de cócoras, seu Ramos, sua barriga e a lixa esperaram por mais de uma hora até que Jandira apareceu na porta.
- Prontinho, seu Ramos. Que que o senhor quer?
- Não sei, Jandira, nem lembro mais. Me ajuda a levantar desta cadeira. Quero tomar banho, daqui a pouco chegam minhas netas. Hoje faz um ano que a Nena morreu.





A tigela tem cor de areia molhada. Dentro dela a massa amarela. Viscosa. Pão – de - ló. Bolinhas de sabão que rebentam pelo ar. O dedo da menina corre devagar, passa pela borda. O tapa vem, o dedo se recolhe. A massa é derrubada na assadeira. De prata se tinge de ouro claro. Tigela esquecida sobre a pia chama o dedo que se envolve em capa grossa. Sobe à boca que o lambe em riso. Volta à tigela e passeia. Deixa um rastro como de bicicleta à beira-mar. Boca, tigela, boca, tigela. E o dedo captura o finzinho da massa. A tigela está limpa e brilhosa. A menina é risada gostosa.




imagens da internet






sexta-feira, 11 de maio de 2012

Partilhar o pão

É fim de tarde, o sol se despede deixando seus longos brilhos sobre o chão de tijolos da varanda.
Os pais, sentados na ponta das cadeiras de lona listrada, ao lado da mesinha redonda, rezam a missa do dia. Com as mãos, a mãe corta do filão um naco, lambuza na manteiga fresca e passa o pão no pires cheio de açúcar.
As crianças esperam cada uma o seu quinhão enquanto conversam sobre as fileiras de formigas que acharam no quintal, que fizeram estradas por todo o lado, e que, quando se encontram, as formigas se cumprimentam, reparou? Elas param e encostam a cabecinha uma na outra e como são fortes, mãe, cê tem que ver! Elas carregam umas folhas muito mais grandes do que elas. 
O pai diz que vai botar veneno, as crianças se rebelam. 
A noite chega rápido. A família se recolhe.
No chão da varanda, as migalhas duram nada. Também as galinhas de penas douradas se atropelam embaixo da mesinha e colhem a parte que lhes toca nesta celebração.


imagem da internet

Quase haikais de outono


Remo


A folha seca
Encantada
Rodopia ao sabor do vento

As outras folhas do arbusto
No seu balanço contido
Contemplam-na com inveja

                                                                                                                                 

Andar
Sobre a espinha dorsal da grande folha caminha a borboleta. Como bailarina, abre as asas em busca de equilíbrio. Faz o percurso três vezes. 
Na quarta, arrisca-se pelas ranhuras laterais até que se lança sobre o chão úmido. Continua a andar. 
A borboleta não quer mais voar.


pássaro de topete - internet

                           Corpo preto
Crista branca
Canta um roque sertanejo
O pássaro que hoje vejo

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Foi raiva?

Dia seguinte, Dona Ester, atrás de ovos no galinheiro, vislumbra Lidinha lavando roupa no tanque. Observa-a de perfil a esfregar uns panos. Barriga grande. De novo?! Não é possível, esta moleca não tem nem 18 anos e já com 3 filhos para criar! Para quem criar? Ela ou a Rosa? A raiva vai subindo, a fúria contida vem como explosão: Sai daqui hoje mesmo, Lidinha. Pega suas tralhas, seus filhos e some da minha vida, desaparece! Chispa daqui, não vê o que faz com seus pais, com você mesma, sua louca, sem juízo, sem vergonha!

Rosa escuta os berros da patroa, sai porteira afora para buscar o neto na escola. Fazia isto todas as tardes, não podia se atrasar. Todo mundo sabia que o moleque era levado, se demorasse ele aprontava. Aquela era a hora do seu prazer. Voltaria conversando com o menino pela estrada, ele sempre falante contando mil histórias. Ela só pensava no momento em que o abraçaria e ele lhe daria aquele beijo lambuzado.

Já vinham voltando quando ela caiu. Do nada. O garoto ficou sozinho na estrada, sentado ao lado da avó, esperando que ela se levantasse. Anoiteceu. 


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Ninguém sabia da Rosa, nem do moleque. Lidinha pôs as mãos na cabeça que já estava fervendo com a bronca da dona Ester. Onde está meu filho? Eles não voltaram da escola? Ninguém tinha visto nada. Sabia de nada.

Antenor, a rotina revirada, estava atordoado. Fez o caminho da escola, a cabeça girando, os pensamentos todos se amontoando feito batata em saco. À frente, um vulto. O grito Vô!!! E a corrida desesperada, a vó caiu, não quer levantar, não quer falar comigo e vem um choro inundado como se tivessem aberto as comportas da represa do medo. 

Antenor carrega o garoto e o abraço contém no carinho os pequenos ombros que soluçam. Os lábios tocam sua cabeça suada. Ajoelha-se perto de Rosa. Sobe um grunhido do meio do peito, um grito contido. Desata, ele também, no choro mais profundo, o velho e o menino, agarrados, despejando um rio sobre o colo inerte e frio da mulher. 

imagem da internet estrela-nasa-morte

...desde que as filhas ficaram grávidas, muito meninas, a mulher começou a adoecer...

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Ainda a Raiva

Enquanto Antenor se recuperava da operação, o tempo foi passando, os netos crescendo por ali mesmo. Ninguém, a não ser ele, poderia levar avante a ideia de pedir a casinha de aluguel que tinha na cidade, pra botar as filhas. E ele não teve energia. Dona Ester e seu Leandro fingiam que não viam e procuravam se aborrecer o menos possível com a choradeira das crianças. Mas se aborreciam. E iam ficando com raiva também. 

Nasceu o segundo filho da Lidinha, outro menino. O mais velho já começava a andar e era agarrado no avô. Onde ia o Antenor, o menino queria ir e, muitas vezes, ia mesmo, escapando dos olhares dos adultos. Naquele dia, encontraram-no na cerca, quase fora do sítio, um menininho que nem dois anos tinha! Que peste! – reclamaram as mulheres. - Que moleque! - exclamou o avô, com orgulho.

Antenor, de repente, começou a se lembrar de quando chegara ao sítio para trabalhar. Vinha do Paraná, moço ainda, já casado e pai de meninas pequenas. Viu as duas correndo debaixo das mangueiras como via agora o neto. Narizes sujos, pés descalços, adoravam dar risada. Como a mãe. Chegaram cheios de esperança. Foi o dono do empório que lhes falou sobre Dona Ester, uma mulher moça da cidade que estava levando o sítio, praticamente sozinha. Precisava demais de um caseiro, de uma família que morasse lá, que entendesse de lavoura, de horta, de galinhas, que fosse gente honesta e trabalhadora. Pois eles eram tudo isto. Ele conhecia os segredos da lavoura, a mulher era trabalhadeira e eles precisavam de um lugar para morar e criar as filhas. Na primeira conversa com dona Ester percebeu logo que era uma mulher decidida e de bom coração, tiveram uma simpatia simultânea os três. As meninas se enroscavam nas pernas da mãe e não respondiam às brincadeiras de dona Ester, nem olhavam para ela. Engraçado – pensou Antenor – desde o começo não deu liga. Ele se lembrava bem que, no início, Rosa fazia tudo para que as meninas fossem simpáticas com a patroa mas elas nunca quiseram mais do que o contato indispensável. Dona Ester também não insistiu; contanto que não atrapalhassem o trabalho dos pais, estava tudo bem.

Rosa abraçava com força o menino que podia ter sumido cerca afora, escondia o sorriso com a  cara enterrada na cabeça dele, mas os olhos choravam e queria não pensar sobre os problemas que estavam todos exatamente no mesmo lugar. As filhas continuavam sem trabalho, sem casa, vivendo às custas deles; agora eram três crianças mais as mães: cinco bocas para comer, vestir, educar, dar remédio, tudo. Raiva.


imagem da internet

Pois não é que um dia, o segundo filho não tinha nem seis meses e Lidinha engravida pela terceira vez? Rosa percebeu, quis não acreditar, nem falou com Antenor, escondeu o pensamento até de si mesma. Porém, deu de ver fantasma, de escutar vozes, discutia com o invisível. Notaram que ela andava meio esquisita, mas também, com tanto problema, é natural – pensavam todos.

Uma tarde, perto das quatro horas, pegou uma faca, entrou na casa de Dona Ester e a ameaçou. Falava como se fosse outra pessoa, era difícil de entender, a fala enrolada, a voz muito grossa. Mas a faca em sua mão apontava a patroa.

Dona Ester, o coração aos pulos, as mãos molhadas, com um controle vindo de não se sabe onde, conseguiu mostrar-se calma, conversou com Rosa, chamou-a a si. Seu Leandro, que escutara um zumzumzum lá da varanda, entrou por detrás de Rosa, chamou-a pelo nome e pediu um suco, voz mais serena, impossível. Daqueles seus, hein, Rosa, um bem gostoso que o calor está demais. Ela disse sim senhor e entregou-lhe a faca. Ficaram D. Ester e seu Leandro a se olharem boquiabertos. Abanavam-se. Tinham de tomar alguma providência. Precisavam pensar.


continua na próxima semana

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Rosa e Antenor - A Raiva

Desde que as filhas ficaram grávidas, muito meninas, a mãe começou a adoecer. As garotas tiveram seus filhos morando em casa dos pais. A patroa não gostara nada daquilo. Primeiro porque as meninas nunca haviam se empenhado em aprender grande coisa; mal iam à escola e pouco ajudavam os pais. Agora, cada uma com um filho nos braços, mais precisavam de ajuda do que podiam ajudar em alguma coisa. Dona Ester ficou possessa quando descobriu que Lidinha já tinha posto barriga, de novo. Chamou a caseira, o caseiro, disse o que pensava e avisou: “Não quero mais estas meninas aqui em casa e também não quero homem nenhum entrando no sítio, pra falar com elas. Se escolheram esta vida, podem vivê-la. Onde quiserem. Aqui, não!”
Os dois balançaram a cabeça, até concordaram com a patroa.
Entretanto.
Coração de mãe principiou apertar. Deu de falar sozinha, a Rosa. Ia para a horta e ali despejava suas lágrimas, regando as folhas de escarola, de alface, os pés de berinjela. Para onde iriam as meninas? Como fazer com os netos que cresciam? Do que elas iam viver? Os pais das crianças não iam arcar com despesa nenhuma, alegavam desemprego. Rosa não tinha resposta para nada, não tinha solução. As filhas sempre foram meio bobas, nunca souberam aproveitar as oportunidades que tiveram para aprender uma profissão. Nunca foram atrás de nada. “A não ser de homem!” – gritou ela, furiosa. “Nasceram para ser putas”. Será que existe isto? – pensava Rosa soluçando entre os ramos de tomate. 
Dona Ester e Seu Leandro também se preocupavam mas diziam que não tinham nada a ver com aquilo. Seus empregados eram os caseiros, não suas filhas e netos. “Pagamos todos os direitos deles! Já basta!”
Antenor, o marido de Rosa, era um homem trabalhador, muito responsável, religioso. Só não foi capaz de segurar as filhas. E agora?
Eles tinham uma casinha na cidade, estava alugada. O dinheiro do aluguel foi sempre uma boa ajuda. Teria que pedir a casa e colocar as filhas lá dentro. Perderia dinheiro, gastaria ainda mais.
Ele foi ficando perturbado. Mas não se dava conta do sentimento que brotava em seu peito. Não era certo ter raiva. Não era coisa de cristão. Um dia surgiu uma dor no estômago, forte demais. Uma pontada, um puxão. Não teve força para gritar. Rosa vinha subindo da horta quando o viu desabado no chão do galinheiro, as angolas cacarejando indiferentes. Largou as verduras em qualquer lugar, correu para atender o marido. Tinha raiva dele também, misturada com amor, com desencanto, e tudo se mesclava no abraço que lhe deu, levantando-o sem pensar e carregando-o até a cama.  As filhas não estavam, tinham levado as crianças para vacinar. Os patrões, na cidade. Antenor não falava, respirava ofegante. Ela ligou para a patroa que voltou para o sítio num instante e já com uma ambulância. Antenor foi atendido a tempo, tinha era uma úlcera que precisou ser operada às pressas. Raiva.

continua na próxima semana
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sexta-feira, 13 de abril de 2012

Avô e netos


Joel chorou porque não cabia no carro que levou os primos e a tia para a estação.
- Eu também não vou – acalmava-lhe a mãe – logo o vovô está de volta, não chore, Joel, vem, vamos dar comida pros cachorros.  Ele chorava baixinho, as lágrimas escorriam pelo rosto e se misturavam com a poeira.  
Quando o avô voltou da estação, encontrou Joel esperando na porteira. O avô vinha triste com a partida do outro neto, o preferido. Reparou nos cabelos crespos de Joel. Tão compridos, pareciam peruca. 
- Joel, vamos  no barbeiro? Vamos cortar este cabelo?
- Eu?! Nunca fui no barbeiro...
Antenor abriu a porta do carro e o menino entrou. Sentou no banco da frente, quietinho, nem olhou para o avô. O barbeiro ficava na vila ali perto, tiveram de dar meia volta, fazer manobra na estradinha de terra, Joel prestava muita atenção nas mãos do avô mexendo na alavanca do câmbio, nos pés e nos pedais. Não ousava levantar os olhos para olhar o velho, não perguntou sobre os primos que viajaram e nem o homem contou.
A cadeira do barbeiro era alta. Joel ficou afundado no assento, a cara quase batendo na mesinha de apoio sob o espelho. O barbeiro não era homem de cortar cabelo de criança, mas Antenor insistiu, por favor, Toninho, olha o cabelo deste moleque, tá parecendo arame farpado.
- Leva ele no meu filho, Antenor, ele tem um salão na cidade, lá ele corta cabelo de criança e tem uma cadeira que  parece um carro. Tem até televisão.
Ao ouvir isto, Joel lançou um olhar para o avô e puxou a manga da camisa dele com tanto jeito...
O velho agarrou o garotinho e o pôs de volta no carro, desta vez no banco de trás.
-Fica bem quietinho e se segura que agora a gente vai mais longe.
Joel estava encantado. Na cadeira do barbeiro da cidade, sentiu-se um rei sentado naquele carro vermelho. Levantou o queixo, olhou no espelho, deu um sorriso orgulhoso. Seus cachos claros rolavam para o chão; ele via apenas o volante e se imaginava guiando como acabara de ver o avô, mudando as marchas, apertando os pedais, batendo buzina. Quando o barbeiro falou está pronto ele levou um susto.
-Ah, já? Sair do carro?
Tiraram-no de lá e o puseram no chão. Num instante estava, de novo, sentado no banco de trás do carro do avô, as mãos na direção imaginária, a boca fazendo barulho de motor. Antenor percebeu a paixão que se iniciava e parou numa banca de jornal. Comprou um carrinho de brinquedo. Foi o primeiro presente que ele deu a este neto. Chegaram ao sítio. Muito diferentes.


sábado, 31 de março de 2012

Abrir a caixa


Já eram seis da tarde do dia da missa de sétimo dia, quando enfim Marta achou tempo para entrar no consultório do pai. Há anos não fazia isto. Girou a chave na fechadura, abriu a porta, procurou o interruptor. Assim que o acionou, uma das luzes iluminou um porta-retratos num canto da estante. Nunca reparara, a luz caía exatamente sobre a foto que ela dera ao pai no dia da formatura. Encheu o peito num suspiro. Estava absolutamente só agora. 
Os olhos percorreram a estante devagar tateando objetos conhecidos, a foto do casamento, o cristal, manuais de medicina, o busto de Louis Pasteur, placas de prata. Havia ainda uma caixa de madeira marchetada que ela não conhecia. Alcançou-a e surpreendeu-se com o peso. Abriu. Vazia. 
Virou-a de lado, de cabeça para baixo, tornou a virar algumas vezes até que tocou um ganchinho e o fundo da caixa se abriu despejando ao chão um volumoso maço de cartões. Marta agachou-se para apanhá-los, movimentos atrapalhados. Juntava alguns para soltar outros, a operação levou um tempo interminável. Finalmente sentou-se à escrivaninha para lê-los.
Firenze, Paris, Berlim, Berlim, Natal, Natal, Natal, Natal, um após outro, sempre o mesmo final: Sua filha, Irina
Um aperto no peito, um gosto estranho na boca, um sentimento totalmente inexplorado tomou conta de seu corpo.



imagem da Internet 

sexta-feira, 23 de março de 2012

Busca


Casa pro sem teto
Terra pro índio


Vogais pro alfabeto
Porta pra chave


Busco a tampa pra panela
O cadarço pro tênis
O rodo pro balde

A máscara pras olheiras
Busco
O livro pra cabeceira

Busco o professor para o aluno
Busco a palavra que o toque

A música pro silêncio
Busco o silêncio na música

Cabelos pro pente
O nada na mente

O descanso
O sono

                                            Busco um tempo
                                        Mais lento
                                 Longas horas
                            
                                                            
                                             Busco um espaço
                                        Mais próximo
                                  Um encontro
                           



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