sábado, 19 de maio de 2012

O avô e as netas

Sem levantar, puxou a cadeirinha baixa que ficava à beira da cama. Empurrou o corpo até a cadeira e desabou sobre ela. A madeira rangeu, ele quase pensou que aquela companheira de longa data iria se quebrar com seu peso de elefante cansado.
Abriu a gaveta do criado-mudo, puxou a lixa. Examinou-a com cuidado testando com a ponta dos dedos se ainda tinha “fio”. Tinha. Esticou o pé descalço e tentou alcançá-lo por sobre a barriga incômoda. Impossível. Pôs o pé sobre a cama procurando um ângulo mais favorável; o braço tinha encurtado, só chegava até o joelho. Olhou a unha do dedão que crescera mais de um lado que do outro e andava furando as meias. Sentiu-se tão velho, tão velho. Deu um suspiro e, em seguida, um berro para Jandira.
- Senhor? – respondeu ela de longe. – Que que aconteceu?
- A lixa, Jandira. Preciso que você me lixe a unha do dedão! Vem cá, por favor!
- Tô indo, seu Ramos, um instantinho.
Sentado na cadeirinha quase de cócoras, seu Ramos, sua barriga e a lixa esperaram por mais de uma hora até que Jandira apareceu na porta.
- Prontinho, seu Ramos. Que que o senhor quer?
- Não sei, Jandira, nem lembro mais. Me ajuda a levantar desta cadeira. Quero tomar banho, daqui a pouco chegam minhas netas. Hoje faz um ano que a Nena morreu.





A tigela tem cor de areia molhada. Dentro dela a massa amarela. Viscosa. Pão – de - ló. Bolinhas de sabão que rebentam pelo ar. O dedo da menina corre devagar, passa pela borda. O tapa vem, o dedo se recolhe. A massa é derrubada na assadeira. De prata se tinge de ouro claro. Tigela esquecida sobre a pia chama o dedo que se envolve em capa grossa. Sobe à boca que o lambe em riso. Volta à tigela e passeia. Deixa um rastro como de bicicleta à beira-mar. Boca, tigela, boca, tigela. E o dedo captura o finzinho da massa. A tigela está limpa e brilhosa. A menina é risada gostosa.




imagens da internet






9 comentários:

  1. Uxa,

    Bom dia!
    Uma delícia de ler! continua?

    bj

    Virginia

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  2. Querida Uxa, melhoras e obrigada,
    a gente chega a ver ,o que vc escreve ,
    de tão real.
    Madú

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  3. Cara Uxa,
    Boa tarde! Bom sábado!
    Seu Ramos e seu dedão, Dª Nena e sua morte, Jandira e seu jeitão.
    Tem gente melhor? Tem não.
    Muito boa a sua escrita sobre os seus personagens.
    É isso o que eu acho.
    Quanto me dóem os idosos e suas unhas do pé. Dóem bastante, eu lhe asseguro.
    Vejo, de perto na memória, algumas unhas cravadas, entortadas, meio escuras, escuras inteiro.
    E as unhas são feias, às vezes sujas. Machucam os velhinhos e as velhinhas nas noites sob as cobertas. Enroscam-se, puxam fios, ferem.
    Mostram o abandono. Alardeiam a solidão.
    Conheci a narrativa de um voluntário que se dedica a cortar unhas do pé.
    Percorre casas de recolhimento de velhinhos e velhinhas.
    Seleciona quatro casas.
    Assim, calcula e explica: os velhinhos e velhinhas têm suas unhas cortadas ao menos uma vez em cada mes.
    Esse voluntário e sua decisão despojada, saída de não sei que lugar de dentro da cabeça dele, não posso esquecê-lo.
    E nem quero esquecer-me dele na sua visitação crua, mês a mês. Eu o tenho para meu exemplo maior.
    Cada vez que me penso desistir, lembro dele. A vida fica maior. E eu? Nela, decididamente.
    Toda minha admiração pelo seu texto, até mais,
    Cibele
    Em tempo: O texto Menina,Tigela, Massa-de-ló é uma graça. Leve. Divertido. Guloso.
    Cibele

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    1. Cibele, minha querida mais fiel comentarista, que maravilha de texto este seu! Deu uma dimensão tão solidária a este seu Ramos que me comoveu às lágrimas. Que viva este voluntário que corta unhas dos velhinhos e que nós saibamos fazer também valer a nossa vida!
      Um beijo muito grato e cheio de afeto
      Uxa

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  4. Sare a gripe sem consumi-la e sem afetar a imaginação, para deleite nosso!

    Bjs outonais
    Ruth

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  5. Não sei se já disse, mas, gosto muito de como você escreve. A cena fica bem clara em nossa mente. Parabéns!!

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  6. Oi Uxa ,
    enquanto voce espera os netos e a gripe sarar… vou curtindo o seu texto no domingo de manhãzinha, antes do jornal!
    bjs
    Ana Caleiro

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  7. Gosto muito do seu imaginado.
    Melhoras, bjs.
    Bel

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