Abriu a gaveta do criado-mudo, puxou a lixa.
Examinou-a com cuidado testando com a ponta dos dedos se ainda tinha “fio”.
Tinha. Esticou o pé descalço e tentou alcançá-lo por sobre a barriga incômoda.
Impossível. Pôs o pé sobre a cama procurando um ângulo mais favorável; o braço
tinha encurtado, só chegava até o joelho. Olhou a unha do dedão que crescera
mais de um lado que do outro e andava furando as meias. Sentiu-se tão velho,
tão velho. Deu um suspiro e, em seguida, um berro para Jandira.
- Senhor? – respondeu ela de longe. – Que que
aconteceu?
- A lixa, Jandira. Preciso que você me lixe a unha
do dedão! Vem cá, por favor!
- Tô indo, seu Ramos, um instantinho.
Sentado na cadeirinha quase de cócoras, seu Ramos, sua barriga e a lixa esperaram por mais de
uma hora até que Jandira apareceu na porta.
- Prontinho, seu Ramos. Que que o senhor quer?
- Não sei, Jandira, nem lembro mais. Me ajuda a
levantar desta cadeira. Quero tomar banho, daqui a pouco chegam minhas netas.
Hoje faz um ano que a Nena morreu.
imagens da internet
A tigela tem cor de areia molhada. Dentro dela a
massa amarela. Viscosa. Pão – de - ló. Bolinhas de sabão que rebentam pelo ar.
O dedo da menina corre devagar, passa pela borda. O tapa vem, o dedo se
recolhe. A massa é derrubada na assadeira. De prata se tinge de ouro claro.
Tigela esquecida sobre a pia chama o dedo que se envolve em capa grossa. Sobe à
boca que o lambe em riso.
Volta à tigela e passeia. Deixa um rastro como de bicicleta à
beira-mar. Boca, tigela, boca, tigela. E o dedo captura o finzinho da massa. A tigela está limpa e brilhosa. A menina é
risada gostosa.
imagens da internet
Uxa,
ResponderExcluirBom dia!
Uma delícia de ler! continua?
bj
Virginia
Querida Uxa, melhoras e obrigada,
ResponderExcluira gente chega a ver ,o que vc escreve ,
de tão real.
Madú
Cara Uxa,
ResponderExcluirBoa tarde! Bom sábado!
Seu Ramos e seu dedão, Dª Nena e sua morte, Jandira e seu jeitão.
Tem gente melhor? Tem não.
Muito boa a sua escrita sobre os seus personagens.
É isso o que eu acho.
Quanto me dóem os idosos e suas unhas do pé. Dóem bastante, eu lhe asseguro.
Vejo, de perto na memória, algumas unhas cravadas, entortadas, meio escuras, escuras inteiro.
E as unhas são feias, às vezes sujas. Machucam os velhinhos e as velhinhas nas noites sob as cobertas. Enroscam-se, puxam fios, ferem.
Mostram o abandono. Alardeiam a solidão.
Conheci a narrativa de um voluntário que se dedica a cortar unhas do pé.
Percorre casas de recolhimento de velhinhos e velhinhas.
Seleciona quatro casas.
Assim, calcula e explica: os velhinhos e velhinhas têm suas unhas cortadas ao menos uma vez em cada mes.
Esse voluntário e sua decisão despojada, saída de não sei que lugar de dentro da cabeça dele, não posso esquecê-lo.
E nem quero esquecer-me dele na sua visitação crua, mês a mês. Eu o tenho para meu exemplo maior.
Cada vez que me penso desistir, lembro dele. A vida fica maior. E eu? Nela, decididamente.
Toda minha admiração pelo seu texto, até mais,
Cibele
Em tempo: O texto Menina,Tigela, Massa-de-ló é uma graça. Leve. Divertido. Guloso.
Cibele
Cibele, minha querida mais fiel comentarista, que maravilha de texto este seu! Deu uma dimensão tão solidária a este seu Ramos que me comoveu às lágrimas. Que viva este voluntário que corta unhas dos velhinhos e que nós saibamos fazer também valer a nossa vida!
ExcluirUm beijo muito grato e cheio de afeto
Uxa
Sare a gripe sem consumi-la e sem afetar a imaginação, para deleite nosso!
ResponderExcluirBjs outonais
Ruth
Não sei se já disse, mas, gosto muito de como você escreve. A cena fica bem clara em nossa mente. Parabéns!!
ResponderExcluirOi Uxa ,
ResponderExcluirenquanto voce espera os netos e a gripe sarar… vou curtindo o seu texto no domingo de manhãzinha, antes do jornal!
bjs
Ana Caleiro
BJSSS
ResponderExcluirSaudades
San
Gosto muito do seu imaginado.
ResponderExcluirMelhoras, bjs.
Bel