Agradeço por todas as bênçãos do ano que passou,
as de que me lembro e, as incontáveis, que recebo todos os dias sem me dar conta.
Se o que penso, atraio para mim,
para o Ano Novo quero pensar coisas boas.
Vou ver, na Terra, as pessoas de todas as partes vivendo em Paz,
alimentadas e abrigadas.
Vou ver os governantes assinando tratados de entendimento e
de respeito entre os povos.
Vou ver as crianças do mundo todo sendo criadas com amor
e educadas com sabedoria.
Vou ver os velhos sendo ouvidos e cuidados.
Os jovens com oportunidades de trabalho e desenvolvimento.
Vou ver um mundo onde reina a justiça e a equanimidade.
A natureza é respeitada, as plantas bem nutridas,
as águas correm puras, o ar é limpo e refresca.
Um mundo onde os animais
são tratados com bondade e respeito,
A alegria e o riso prevalecem,
cada um expressa o que há de melhor em sua humanidade.
Um mundo consciente de que a beleza vem de nossas diferenças
e que estas diferenças constituem nossa maior riqueza.
Vou ver nosso país ultrapassando as fronteiras da miséria
física e espiritual.
Uma nação mais responsável e consciente.
Que minha consciência ampliada me leve a atitudes responsáveis
e genuinamente amorosas.
Que eu me mantenha em atitude de gratidão, coragem e humildade.
Estamos todos no mesmo barco e, muitas vezes, a travessia é penosa.
Que eu realize a minha parte para que a Luz se espalhe.
Que o mundo todo evolua e se eleve.
Que o Amor da Divina Criança continue a nos unir e iluminar no ano que entra.
Que assim seja e assim será.
sexta-feira, 30 de dezembro de 2011
sexta-feira, 23 de dezembro de 2011
A Espera (versão 2)
Rua Buriti, 93, Vila Natal, zona sul, São Paulo. Primeiro pega o trem na Lapa e depois o ônibus. Do ponto até a casa não é longe.
O dia amanheceu frio. Tudo às avessas nestes tempos. Ao subir o último dos 12 degraus, apoiando-se na bengala, o suor escorre-lhe da testa. Bate palmas enquanto olha a rua lá embaixo e imagina a cor que a sobrinha escolherá para pintar a casa nova quando, enfim, tiver dinheiro.
Abrem a porta dois olhos pretos brilhantes no topo de um vestidinho azul salpicado de bolinhas brancas. O vestidinho a conduz, sem palavras, até a mesa baixa perto do sofá, coberta por um papel verde imitando grama. Sobre a grama, uma casinha feita de palitos de sorvete, José e Maria, de arame e na caixa de fósforos vazia, um lencinho de papel branco. A árvore ladeando o presépio foi feita com fundos de garrafas pet pintadas de verde e os enfeites, ela entendeu, são desenhos das crianças, colados nas tampinhas. Tudo preparado para a chegada do Salvador.
A miudinha abre os dois braços para apresentar o espetáculo e depois junta as mãozinhas.
O riso quer escapar mas se guarda; o rosto da tia Linda é solene, como merece a situação.
A porta se fecha com uma rajada de vento e a chuva começa a cair.
A porta se fecha com uma rajada de vento e a chuva começa a cair.
Feliz Natal
A Espera
Rua Buriti, 93, bairro do Grajaú, zona sul, São Paulo. A casa tem laje, vai ter de subir 12 degraus. Primeiro pega o trem na Lapa e depois o ônibus tal. Do ponto até a casa não é longe.
O dia amanheceu frio, no dezembro tropical. Tudo às avessas nestes tempos. Ao subir o último dos 12 degraus, apoiando-se na bengala, o suor escorre-lhe da testa. Bate palmas enquanto olha a rua lá embaixo e imagina a cor que a sobrinha escolherá para pintar a casa nova quando enfim tiver dinheiro.
Abrem a porta dois olhos pretos brilhantes no topo de um vestidinho azul salpicado de bolinhas brancas. O vestidinho a conduz, sem palavras, até a mesinha baixa perto do sofá, coberta por um papel verde imitando grama. Sobre a grama, uma casinha feita de palitos de sorvete, José e Maria, de arame e na caixinha de fósforos vazia, um lencinho de papel branco. A árvore ladeando o presépio foi feita inteirinha com fundos de garrafas pet pintadas de verde e os enfeites, ela entendeu, são desenhos das crianças, colados nas tampinhas. Tudo preparado para a chegada do Salvador.
A miudinha abre os dois braços para apresentar o espetáculo e depois junta as mãozinhas:
-Tia Linda, olha! Jesus ainda não chegou mas tá quase. Por isto não tem ninguém no bercinho. Sabe, não é bercinho, é "mugidoura", que é onde eles punham palha pras vacas, cê sabia?
-Hã, hã....
O riso quer escapar mas se guarda, o rosto da tia Linda é solene, como merece a situação. A porta se fecha com uma rajada de vento e a chuva começa a cair.
-Xii, vamo acendê as luzinhas...
-Xii, vamo acendê as luzinhas...
Feliz Natal
sexta-feira, 16 de dezembro de 2011
De novo
Dentro do apartamento, metade dele, metade dela, o sol já não entra, nem a chuva. Há apenas um ranço úmido morando ali; empapa os objetos, os deixa sombrios. Vivem na bruma e já não discutem mais. Suas palavras não pertencem à mesma língua. Ela arruma meia-dúzia de roupas na mala, deixa um bilhete, apaga as luzes, fecha a porta atrás de si. Tempo, sal e mar para lavar as feridas.
...
É fim de tarde e ele está só. Como sempre. Vai andar na praia, olhar as marcas de seus passos na areia. Engraçado como aquilo o assegura de que percorreu um caminho. Para vê-lo, tem de virar o corpo todo, evita a dor aguda no pescoço enrijecido. As pernas manquitolam. O boné, comprado há anos, na África, esconde a nuca e dá à testa um para-sol. A pele branca e fina começa a enrugar como pétala de papoula. Um homem seco em dias vagarosos. Como de hábito, entra no mar próximo às encostas que se erguem do chão. A água ali é mais tépida.
A mulher nada em braçadas lentas, vai e vem, faz do mar sua piscina. Ele pára; seus olhos seguem a nadadora como quem segue uma partida de tênis projetada em câmara lenta. O tempo, que já é lento, estanca. Uma gaivota faz um vôo baixo e a mulher sai do mar. Deita-se ao sol, a cabeça sob o guarda-sol vermelho. Ele, então, mergulha e põe-se a desenferrujar as juntas.
Dançam vários dias esta dança muda. Sexta-feira, quando sai do mar, como faísca o olhar da mulher enfia-se dentro dele. Seu corpo está vibrando quando se senta ao lado dela. Conversam até o amanhecer.
O homem assiste o amor germinar no solo de seu peito como a terra seca permite brotar a hortelã. Vai tomando conta, abrindo espaços, empurrando os pedregulhos, encompridando os fios de suas raízes para o fundo, para dentro.
Nela, o desejo frustrado vê-se num corpo agora habitado pelo calor forte do sol gritando a chegada do novo verão.
O beijo chega, sem aviso, numa onda que surge imensa dentro do mar calmo. Logo a atravessam saboreando o sal. A paz os inunda, lubrifica o cinismo que rói seus ossos. Brindam ao sol no fim da tarde. Debaixo dos guarda-sóis, constroem, de novo, os mesmos castelos de areia de sua infância.
sexta-feira, 9 de dezembro de 2011
Estranhamentos
Vi o bebê manipulando o ipad, abrindo e fechando a mãozinha, correndo o dedo pra cima e pra baixo. Quando pega a revista que não responde às manipulações, ela se irrita. Muito engraçadinho. E revelador.
A dona da vídeo-locadora estava descrevendo a filha de 12 anos com as amigas. Elas se reúnem na casa dela, cada uma com sua mochila. Sentam à mesa, abrem a mochila e de lá retiram, cada uma, o seu laptop. Conectam-se e começam a conversar pelo msn...O cérebro deles deve funcionar diferente do nosso.
Sabe aquela música, olhos nos olhos, quero ver o que você diz... Não vão entender nada... Quem é este v e l h o? - perguntam. Ri o Chico em desespero quando vê na internet os comentários sobre sua obra.
Elas vão à balada. Precisa beijar. Muitos ou muitas, não importa. No mínimo pegam sapinho. Por que?
Por que precisa beijar? E por que qualquer pessoa? Não era para ensinar a serem críticos?
E tem cada vez mais menina de 12 anos que já é mãe. Ou querem recuperar a infância que não tiveram, ou é o único papel que se vêem fazendo. Absoluta falta de perspectiva.
A mãe dá um tapa na bunda do filho de 4 anos, por conta de uma mal-criação. A criança pega o telefone e chama a polícia. Dali a 3 minutos, tem uma viatura na porta, a mãe fica pasma e chora. O que você faria?
A professora ensina que é preciso denunciar os abusos paternos para a polícia. Está certo, quem quer que as crianças sejam jogadas pela janela por madrastas doentes, quem quer que as crianças fiquem presas em porões, anos a fio, abusadas por pais enlouquecidos? A criança aprende. O que a professora não ensina junto com isto? Por que as crianças só têm direitos?
Por que o povo só tem direitos? Direito a uma educação medíocre que não fala sobre deveres, sobre contrapartidas; direito aos "bolsa-família", que não vinculam a grana a nenhuma atitude concreta do cidadão em busca de sua autonomia. Tudo bem, os direitos que eram de alguns agora são de todos, sou mais do que a favor. Mas do jeito que está, o que afinal estamos ensinando às novas gerações? Que tipo de sociedade será esta?
Nas gerações antigas a coluna dos deveres era infindável, “criança não tem quereres, tem deveres”, eu escutava meu pai falar. E me revoltei na adolescência e junto comigo toda uma geração. Inventamos um outro jeito de ser. E olha o que a gente fez... Erramos a mão também?
Ou vai ver que temos de colocar tudo isto em perspectiva, numa dimensão temporal, entender como processo. Esta é uma fase que dará lugar algum dia àquela em que as pessoas terão seus direitos, cumprirão seus deveres e arcarão com a responsabilidade de suas escolhas. Bom, isto, se a educação melhorar, se cada um de nós responder por si. Nossa, dá um trabaaaalho! Sem dúvida não é tudo culpa deles, não.
Neste futuro almejado, a impunidade será coisa do passado, do tempo em que havia muitos buracos nas ruas das cidades, em que bastava chover pro trânsito emperrar e nem havia ipad, ipod, laptop, tablet, GPS, noção de sustentabilidade, telhado verde, responsabilidade social, ciclovias, reaproveitamento do lixo, controle da emissão de CO², e outras maravilhas com nomes esquisitos. Imagine! Como será que eles faziam?
Hoje me vi pensando quanta coisa vai se embora com a morte de alguém, quanta coisa aquela pessoa sabia que eu nunca vou ficar sabendo. Já pensou nisto? Lembro de, mocinha, sentar perto meu pai, que sempre foi velho pra mim, e ele querendo me mostrar coisas que eu não queria saber.
sexta-feira, 2 de dezembro de 2011
A hora certa
- Nela, não, nela o senhor não põe a mão! – berra Lavínia postando-se, braços abertos à frente da colega grávida de sete meses.
Soldados invadem o alojamento, abrem a porta a murros e pontapés, jogam ao chão os pertences das meninas, arrancam das paredes o conteúdo dos murais numa fúria insana como se, pessoalmente, tivessem sido ofendidos de morte por cada uma delas. Empurradas para fora do quarto, observam nos corredores os colegas com as mãos para cima, conduzidos em filas para interrogatórios intermináveis, cotucados por baionetas, enfiados em camburões que os levarão sabe deus para onde.
Trêmula, Percília dá um suspiro por sobre o ombro de Lavínia, surpresa por estar viva e incólume quando o último soldado fecha a porta do prédio atrás de si com as palavras:
- Desocupem a área, desapareçam!
Foi o que fez. Imediatamente.
Catou o que tinha, socou na maleta, deu um rápido abraço na amiga, antes que as águas represadas da angústia e do pavor desandassem a rolar. O sentimento era de gratidão profunda por aquele gesto singelo que poderia ter significado a morte da companheira mas as palavras naquele momento não cabiam, eram palavras mudas que se acotovelavam em sua mente deixando no peito um aperto forte e a urgência de sair dali o quanto antes. Verificou que tinha dinheiro justo para pegar o ônibus para Curitiba. Comer, não comeria; mesmo porque o enjôo era a regra. Nem sabe como chegou à rodoviária; como um autômato percorreu o trajeto que fazia regularmente para ver o marido que trabalhava na capital paranaense. Buscou o telefone público para avisar que estava a caminho. Raul não entendeu bem, a ligação estava péssima, por precaução e intuição rumaria para o terminal rodoviário para esperar a chegada do ônibus que partia de São Paulo por volta do horário do telefonema.
No assento de número 19, Percília procurou posição. Desconfortável, a vasta barriga ocupava o banco todo, subia-lhe até o pescoço. O bebê que se mexera incansável por todo aquele longo dia, de repente sossegou, ajeitou-se para dormir. Para ela, o sono não veio. A estrada já era ruim naqueles dias, curvas fechadas, buracos, chuva forte. A cabeça rodava em solavancos, mãos acarinhando a barriga, os olhos cerrados. Uma hora lembrava da mãe e ansiava por tê-la próxima; num flash via Raul ao seu lado, preocupado e amoroso; em outro, vislumbrava Lavínia, para onde teria ido, nunca mais a veria, era certo. E Alberto e Ricardo, seus colegas de turma, engajados no movimento contra a ditadura que vira de soslaio sendo interrogados por três brutamontes armados? Imagens se sucediam no filme de sua insônia e no tranco do ônibus ao cair num buraco, suas coxas se enchem de água e começam as contrações. A primeira foi forte, ela não entendeu o que era, nem se deu conta de que estava molhada. Quando veio a segunda, entendeu: a bolsa estourou, vou dar à luz, o bebê vai nascer! Agora? No ônibus? Não, nem pensar.
O sorriso de alívio de Percília ao vê-lo faz dela a mulher mais linda do planeta e, para ela, condensada naqueles lábios, naquele olhar, no caminhar seguro em sua direção, Raul é a visão de todo o bem que existe na Terra.
- Pronto, tá chegando a hora, filho, agora você pode nascer.
sexta-feira, 25 de novembro de 2011
Temporal de Matilde
Tinha umas poucas horas livres, foi porque lhe chamaram de urgência. Iam viajar, precisavam que passasse umas roupas. Chegou lá era só água, o patrão chorava de soluçar. Que que é isto, o que aconteceu? Aproximou-se tímida. Ele desabou, ela teve de ouvir, não teve alternativa. Dali a pouco, chegou a mulher, mordendo os lábios, entrou na conversa, respondeu ao marido, explicou o que sentia, o seu lado da história. Matilde a ouviu também. Teve de dizer, nem sabe como. Escapou: Ó, eu estou aqui só escutando mas o que importa é vocês se ouvirem.
Assim que deram uma brecha desapareceu para passar a roupa. Aproveitou para fazer uma comidinha para os dois. Teve pena. Enquanto descascava batatas e picava cebolas, olhou pela janela.
O dia escurecia. Os raios rasgavam o céu, um ou outro trovão bombava. “Será que o temporal já passou, ou está só começando? Na mente a imagem do caos que fora sua vida. Três maridos, uma pá de desencantos. Agora vivia bem, mas no começo, nossa, muitas vezes teve de fazer faxinas radicais. Doídas cicatrizes. Não pode evitar separação, cada um para um lado, culpando o outro. Amarrados. Mas esses moços são inteligentes.
Se ela tinha aprendido com o Adeílson que o segredo era fazer limpezas regulares assim que percebiam entulho se formando, eles podem aprender também.
Se ela tinha aprendido com o Adeílson que o segredo era fazer limpezas regulares assim que percebiam entulho se formando, eles podem aprender também.
Misturou os cogumelos com as vagens e salpicou tudo na manteiga e no azeite. Eles! A gente pode ensinar, mas aprender é com cada um.
Foi em busca de soyo e achou na geladeira uma quantidade industrial de embalagens. Abriu uma, direto na panela. Era kechup. Abriu outra. Era mostarda, meus deus, não estou enxergando nada, preciso trocar de óculos, como será que vai ficar o gosto disso? Só queria um pouco de soyo!
Uma mulher não quer ter ao lado alguém menor que ela; a gente quer alguém que ande ombro a ombro com a gente, que assuma o que pode e o que não pode. Botou a frigideira para esquentar. Levei três maridos até achar um que pensasse como eu. O Valderez, deus me livre, que traste, ainda bem que se encantou com a Delfininha e me largou; azar o dela. O Wilson gostava de mandar mas era um frouxo. Fui uma idiota de me meter com ele. Agora, o Adeílson, este sim, sabe como conquistar uma mulher, sabe dividir, sabe somar. Mas vai ver que é isto também que o seu Nelson quer, foi isso que me falou - continuou a refletir ao empanar o peixe na farinha de trigo – ele disse: eu não sou nem mais nem melhor do que ela. Tenho meus defeitos, tenho minhas fraquezas. Mas ela também, ué! O peixe foi colocado com cuidado na frigideira quente, o fogão é péssimo.
É que eles não têm filhos. Com filho a gente é obrigada a aprender muita coisa. Lembrou dos mutilados que viu na TV. O cara tocava violão e a moça trocava as fraldas do bebê. Tudo com os pés. Credo! Também já estou exagerando, fazendo drama! O dia estava agora tão escuro que foi preciso acender a luz. Os trovões, porém, tinham amainado. Os patrões conversavam em voz baixa sentados no sofá.
Da cozinha, Matilde lançou-lhes um olhar e sorriu. Lembrou da dona Ritinha, a patroa antiga: o amor precisa de cuidado, de consideração. Eita velhinha sabida. Foi com a força dela que se separou do Valderez. Tudo precisa de cuidado e consideração. Até ela. Tinha de voar dali. Pôs a mesa, fez os pratos; avisou a patroinha que a roupa estava passada e que deixara cortados os legumes para a sopa da noite. Já eram cinco da tarde. Foi embora.
Nelson e Regina ficaram em casa secando as águas do tornado, removendo o próprio entulho; talvez encontrem um bilhete de amor que se molhou.
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sexta-feira, 18 de novembro de 2011
Dia de Redação
Era para um concurso. Sentados à minha frente doze carinhas jovens e uma canção.
- Pode escrever sobre a nossa vida?
- Pode.
- Pode inventar?
- Pode.
- Pode misturar?
- Pode. Tudo pode, desde que a história seja boa, que prenda o leitor. Comecem que as ideias vem. Palavra chama palavra. Este é que é o barato de escrever.
Demorou até que todos os rostos se concentrassem, os lápis começassem a correr o papel. No alto-falante uma viola soava acordes que me levavam para longe dali.
Olhei para o chão. Um fio d’água vinha do fundo da classe até a porta que ficava à frente. A água foi se avolumando, engrossando e logo cobriu os pés das pessoas. Ninguém parecia notar. Logo chegava aos joelhos. De repente, um golfinho, dos pequenos. Um miúdo e outro e mais outro. Nadavam em volta das carteiras, rebolando as caudas. Guinchavam. O pessoal não reparava em nada e escrevia, escrevia, escrevia. Cada vez mais rápidos. A água lhes tocava os joelhos e suas ideias não emudeciam, pintavam o papel.
- Pode escrever sobre a nossa vida?
- Pode.
- Pode inventar?
- Pode.
- Pode misturar?
- Pode. Tudo pode, desde que a história seja boa, que prenda o leitor. Comecem que as ideias vem. Palavra chama palavra. Este é que é o barato de escrever.
Demorou até que todos os rostos se concentrassem, os lápis começassem a correr o papel. No alto-falante uma viola soava acordes que me levavam para longe dali.
Olhei para o chão. Um fio d’água vinha do fundo da classe até a porta que ficava à frente. A água foi se avolumando, engrossando e logo cobriu os pés das pessoas. Ninguém parecia notar. Logo chegava aos joelhos. De repente, um golfinho, dos pequenos. Um miúdo e outro e mais outro. Nadavam em volta das carteiras, rebolando as caudas. Guinchavam. O pessoal não reparava em nada e escrevia, escrevia, escrevia. Cada vez mais rápidos. A água lhes tocava os joelhos e suas ideias não emudeciam, pintavam o papel.
Alguém abriu a porta: a água escorreu enchendo o pátio. Os golfinhos nadaram para fora deixando a meninada a escrever ao ritmo da música. Sorriam ao reler seus escritos, uma alegria solar foi tomando conta da sala e a música pedia palmas.
Assim que a água baixou por completo, as crianças entregaram suas folhas, azuis como as águas do mar. Que histórias contarão?
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sexta-feira, 11 de novembro de 2011
Cada um vê o que pode
Andava a catar camarões pela areia. O barco pesqueiro deixara rastro. Nos sulcos profundos que a água do mar cobria e descobria, boiavam camarões, peixes pequenos e lulas. Agachado ao lado do baldinho, munido de pá e garfo, Naldinho escolhia cuidadosamante os tesouros que ia ajeitar no monte secreto que esculpia perto dali. Era uma espécie de escultura semi-viva, a areia formando um GRANDE VULCÃO enfeitado de camarões e outros peixes.
- Vou pintar! Vou pintar! – berrava a garotinha empunhando um pequeno pincel. Ela vinha na direção do menino e estancou admirada ao ver o garoto enchendo o balde.
- Nooossa!Você que pescou?
- Não. Achei na areia. Sempre eles deixam aqui. O que você vai pintar?
- Não sei, estou procurando ainda. E balançava o pincel, riscando o ar. Queria um comprido mas minha mãe só me deixou pegar este.
- Eu tenho uma coisa linda pra você pintar. Quer ver?
- Claro! Onde é que está?
- Vem comigo.
Os dois se embrenharam pelo mato ralo que beirava a praia até chegar na pequena cabana feita de folhas de bananeira e canos velhos de plástico.
Naldinho ajoelhou perto do vulcão, aplicou-lhe os camarões e os peixinhos recém “pescados” e soltou:
- Não é lindo?! Pode pintar.
A garota estava pasma – que menino estranho, corajoso. Mas ali não tinha papel, nem tinta, só o pincel curtinho roubado da caixa da mãe.
- Já, já eu volto, espera aí – ela disse. Vou trazer papel e tudo, cuida bem do seu CUSCUS. E saiu correndo de volta para a praia.
sexta-feira, 4 de novembro de 2011
Isto é que é ...
Os olhos semi-cerrados entrevêem a rede na varanda de sua casa, num balanço lento e convidativo. A moleza é tanta que nem consegue aceitar o convite.
Vontade:
Às segundas, quartas e sextas, depois de sair do serviço, toma o ônibus até o metrô, pega o metrô, faz duas baldeações, toma mais um ônibus até o ponto final e anda oito quarteirões em subida para ver a amada.
Dúvida:
O coração do farmacêutico ficou balançando entre as duas moças: ficar com a morena era como aceitar uma oferta de emprego imediato num laboratório pouco conhecido; escolher a ruiva era o mesmo que ficar à espera da resposta do grande laboratório que só viria no final do ano.
Certeza:
Beijou a primeira e se regalou. Mais vale um pássaro na mão do que dois voando.
Nunca voltaria a receber o convite que lhe fizeram aos 11 anos para trabalhar no circo. A mãe não quis nem terminar de ouvir a proposta. Portas fechadas para sempre.
Paciência:
No meio da fofura colorida de meio metro de altura, buscou a ponta do fio da lã azul que se enrolara no vermelho, no amarelo, no lilás, no prata, no preto e no cinza. Depois de duas horas ainda estava sentada no mesmo lugar, a montanha já baixara para 20 cm e 19 novelos estavam organizados por cores.
Medo:
Pulou da porta do quarto aos lençóis num único salto para escapar das garras das bruxas que moram debaixo de sua cama.
Solidão:
Olharam-se distantes e nem uma palavra foi trocada. Caminharam em direções opostas.
Pegou o baldinho e foi regar o mar.
Desaponto:
Estendeu-lhe a mão e esticou o rosto para o beijo mas ela já estava cumprimentando o próximo.
Fechou os olhos, pôs o livro de receitas bem perto do nariz para ver se encontrava por ali aquele cheiro de comida de mãe.
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sexta-feira, 28 de outubro de 2011
Eu e você: Encontro
Deito ao teu lado
E te olho nos olhos
Digo em silêncio
Do amor que nos une
Me enrosco em teus braços
Cipó, pétalas, pele
Abraço teu tronco
A seiva da minha árvore
Corre mansa
Sobre teus lábios
Os olhos cerram
Para enxergar a alma
Minhas mãos tocam teu dorso
Descem montanhas
Buscam
Língua
Saliva
Vulva é mar
Seios, montes
Minha égua a galope
Súbito
Luzes
Cores
Som de tambores
Unicórnios alados
Alcançamos os ares
Voo paralelo
No azul
E mergulho no êxtase
Nas águas
Macias
Dos lençóis
Abro meus olhos
Para ler nos teus
Que voamos
Juntos
sexta-feira, 21 de outubro de 2011
Eu e você: nossas turbulências
Você é mato
Eu sou cidade
Você, legumes
Eu, carne
Eu, ternura
Você, sexo
Eu, trabalho
Você, filhos
Você, silêncio
Eu, palavras
Eu, calor
Você, gélido
Você busca
Eu, encontro
Você se entrega?
Eu me preservo?
Eu sou vinho
Você, água
Você é terra
Eu sou arte
Nas florestas dançarei em silêncio
E você, rezará pelas cidades?
Eu sou cidade
Você, legumes
Eu, carne
Eu, ternura
Você, sexo
Eu, trabalho
Você, filhos
Você, silêncio
Eu, palavras
Eu, calor
Você, gélido
Você busca
Eu, encontro
Você se entrega?
Eu me preservo?
Eu sou vinho
Você, água
Você é terra
Eu sou arte
Nas florestas dançarei em silêncio
E você, rezará pelas cidades?
sexta-feira, 14 de outubro de 2011
Eu e você: eu vi
Eu café
Expresso
Você de manga
Faz suco
Eu vitrola, disco, agulha
Você ipod, ipad
No tekno mergulha
Você pode
Eu desejo tanto
Você saia rodada
Eu preciso me aprumar
Você estrada sem fim, road movie, beijaflor
Eu Garcia Marques, Graciliano, minha dor
Eu vejo a cortina que venta na janela
Você pega o metrô para Itaquera
Você corre
Eu contemplo o tempo
Eu doce de leite
Você nozes ao rum
Você doce deleite
foto da internet
sexta-feira, 7 de outubro de 2011
Eu e você: Sonho
Eu desfolhando meus cabelos ralos, sua cabeleira revolta como galhos de árvore, prenha de frutos maduros. Eu presa à cama, inerte, você em seu cavalo árabe, galopando sobre areias da praia. Eu me anoitecendo, você enchendo o peito de ar e sol e alegria. Eu definhando, os olhos secos, as lágrimas fugiram para o mar, você cada vez mais rápido, vigoroso, o corpo vergado sobre o pescoço do animal, as rédeas curtas, os joelhos espremendo a barriga do bicho, eu me espremendo de dor, minha barriga inchada, odores distantes da sua maresia. Meu quarto escuro, o seu dia ensolarado, minha garganta apertada, você gritando EIA, EIA, EIA!
Eu e você sozinhos. Nossas escolhas.
sexta-feira, 30 de setembro de 2011
Tirar o pó
Na sala de reunião recém reformada da instituição onde trabalha, mal coberta pelo plástico, ficava à mostra a madeira nobre bem talhada, afundada em poeira, pó de cimento e tinta branca lixada.
Ana descobriu a mesa, reverente, como quem pede a benção ao pai. Abaixou-se para limpar-lhe os pés. Seus olhos vaguearam em súbitas visões do passado. Viu-se menina brincando de cabaninha debaixo desta mesma mesa, a grande toalha vermelha, a branca, de renda, ouviu o alvoroço dos grandes almoços de família, o tilintar da louça fina, dos talheres, as risadas, as vozes queridas, aspirou o perfume do bife acebolado dos dias comuns, sentiu o gosto da sopa de mandioquinha, emburrou-se em vãos muxoxos como quando, em pequena, era chamada a tirar o pó da sala de jantar. Doze cadeiras e a grande mesa que abria em duas asas. Cansava só de olhar. Em cada cadeira, sobrepostos, os anéis entalhados na madeira, subiam em colunas salomônicas do assento ao espaldar. Imenso como adentrar uma catedral.
Enxaguou um pano macio, espremeu-o bem para tirar o excesso de água e passou muitas vezes sobre o tampo machucado e esbranquiçado de tinta; esfregou óleo de peroba, deixou secar, lustrou, as lembranças iam e vinham acompanhando seu movimento, abraçando a sala. Enrolou o pano úmido formando um canudo, enfiou-o por cada uma das frestas das cadeiras, correndo de cima abaixo, incessante, vezes sem conta. Ao findar das horas, toda a fuligem removida deu lugar à cor castanho-avermelhada da imbuia, a cor que tinha seu lar.
sexta-feira, 23 de setembro de 2011
A florzinha
Em meio aos empurrões e xingamentos da criançada brincando no pátio, fui pega de surpresa pela pergunta urgente da menininha. Era toda uma aflição. Avançou para mim em passos firmes, estendendo um botão de rosa amarelo desbotado, muito pequenino. No lugar do caule, um cotoco minúsculo.
- O que que eu faço com esta ROSA? Encontrei jogada no chão.
- O que que eu faço com esta ROSA? Encontrei jogada no chão.
Do olhar se ouvia o resto da muda indignação: como alguém pode jogar no chão uma ROSA? Que tipo de pessoa faz uma coisa destas?
A florzinha tão insignificante de repente tomou vulto, agigantou-se, pediu consideração.
A florzinha tão insignificante de repente tomou vulto, agigantou-se, pediu consideração.
Num instante mais do que breve, na palma da minha mão, visitou-me a esperança.
Chega de inverno
E foi por ela, pela menininha da rosa amarela, que costurei o inverno em ponto firme e acomodei-o debaixo da cama. Chega. Já deu. Quero agora pendurar nos cabides do armário a primavera, destrancar o amor, abrir as esquinas, despetalar perfumes, rezar ao vento. Coloco nesta última xícara de chá minha melancolia, dou acabamento no tricô das saudades, embrulho em celofane as despedidas.
Visto-me de sol e acompanho-me até a porta. Novos caminhos.
Visto-me de sol e acompanho-me até a porta. Novos caminhos.
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sexta-feira, 16 de setembro de 2011
O fio
Joca levou o maior susto quando ela se abaixou na classe, perto da carteira dele, chamou seu nome baixinho e lhe deu um embrulhinho de papel. Ele o pegou ao mesmo tempo em que ela erguia o corpo de volta para a cadeira e fixava os olhos na professora fingindo prestar atenção à explicação. Que menina doida, o que será isto? Abriu o pacotinho e lá estava o fio. Castanho e longo, meio dourado como os cabelos dela.
Era verdade que andavam se olhando; ontem mesmo, na fila da cantina, ele tinha lhe emprestado o casaco vendo que ela tiritava de frio. Mas ela o devolveu em seguida como se o toque da lã a queimasse. E agora esta. Que menina doida. Mas que linda era.
A aula demora a terminar, segue para a casa em sua bicicleta, os olhos ficam encompridando a despedida.
Em casa, mal escuta a mãe que lhe oferece o almoço. De dois em dois sobe os degraus da escada, se fecha no quarto para contemplar, sem testemunhas, o lindo fio de cabelo. Enrola e desenrola o fio sobre a escrivaninha, Maria Rita, Maria Rita, o nome passeia em sua boca, prende-o entre os lábios, sente o gosto, repete, ninguém escuta, desenha um círculo, uma cobrinha e finalmente suas mãos, sem que as conduza, formam com o fio um coração.
Em casa, mal escuta a mãe que lhe oferece o almoço. De dois em dois sobe os degraus da escada, se fecha no quarto para contemplar, sem testemunhas, o lindo fio de cabelo. Enrola e desenrola o fio sobre a escrivaninha, Maria Rita, Maria Rita, o nome passeia em sua boca, prende-o entre os lábios, sente o gosto, repete, ninguém escuta, desenha um círculo, uma cobrinha e finalmente suas mãos, sem que as conduza, formam com o fio um coração.
Ah, que babaca, Joca, vai jogar bola, telefona pro Maurício, faz qualquer coisa mas, pelo amor de Deus, sai dessa! Tá louco? Só sabe dela o nome e o jeito como responde às perguntas das professoras e aquele riso que o faz rir por dentro...
A tarde longa acaba em noite cheia de sonhos. Acorda ensopado.
Dia seguinte, se arrasta pelo caminho, chega à escola depois do sinal. Consegue perder a primeira aula. Ufa, mais um tempinho a salvo antes de revê-la...
foto da internet e vídeo gracinha
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