sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Tirar o pó

Na sala de reunião recém reformada da instituição onde trabalha, mal coberta pelo plástico, ficava à mostra a madeira nobre bem talhada, afundada em poeira, pó de cimento e tinta branca lixada.  
Ana descobriu a mesa, reverente, como quem pede a benção ao pai. Abaixou-se para limpar-lhe os pés. Seus olhos vaguearam em súbitas visões do passado. Viu-se menina brincando de cabaninha debaixo desta mesma mesa, a grande toalha vermelha, a branca, de renda, ouviu o alvoroço dos grandes almoços de família, o tilintar da louça fina, dos talheres, as risadas, as vozes queridas, aspirou o perfume do bife acebolado dos dias comuns, sentiu o gosto da sopa de mandioquinha, emburrou-se em vãos muxoxos como quando, em pequena, era chamada a tirar o pó da sala de jantar. Doze cadeiras e a grande mesa que abria em duas asas. Cansava só de olhar. Em cada cadeira, sobrepostos, os anéis entalhados na madeira, subiam em colunas salomônicas do assento ao espaldar. Imenso como adentrar uma catedral.
Enxaguou um pano macio, espremeu-o bem para tirar o excesso de água e passou muitas vezes sobre o tampo machucado e esbranquiçado de tinta; esfregou óleo de peroba, deixou secar, lustrou, as lembranças iam e vinham acompanhando seu movimento, abraçando a sala. Enrolou o pano úmido formando um canudo, enfiou-o por cada uma das frestas das cadeiras, correndo de cima abaixo, incessante, vezes sem conta. Ao findar das horas, toda a fuligem removida deu lugar à cor castanho-avermelhada da imbuia, a cor que tinha seu lar.




7 comentários:

  1. Uxa, que texto lindo. Tirar o pó. o que devemos fazer de tempos em tempos, para voltarmos ao lar.
    bjs
    Maice

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  2. Para uns o pó do pé, para outros o forro grosso que absorvia o café derrubado por mãos desastrosas. Isso desencadeava uma operação delicada - o gelo para não manchar a toalha. o forro para absorver a água que derretia e corria para a madeira da mesa. Essa mesa era coisa fina, foi feita no mesmo lugar que construíram as portas da catedral.
    tica

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  3. mesa de velhas e novas lembranças.Quantas vezes durante 50, 60, 70, anos, ou seria menos, toda a família ocupara esse símbolo de união, paz, confraternização, às vezes discussões políticas acaloradas e inacabadas.
    Essa mesa tem uma vida igual a de qq ser humano,
    alegrias , tristesas, paz guerra, amor desamor e tudo o mais que compõe nossas vidas aqui, nesta terra.
    Hoje ela continua a desfilar sua nobresa, nunca perdida, como base segura de decisões importantes sobre a vida de seres humanos carentes mas não abandonados, e assim ela continua fazendo o mesmo papel que sempre fez, aglutinar, confraternizar, discutir, decidir etc.Eu admiro essa mesa que além de ter cumprido, muito bem, seu objetivo primordial, ela também constitue um fiel depositário, um inestimável cofre, onde estão guardadas facetas,
    pedaços, partes totais, lembranças, inspiração de centenas, quem sabe milhares de seres humanos.Que Deus a proteja e a perpetue.

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  4. valeu, ipinho, meu anônimo indisfarçável, é isto mesmo, que a mesa continue a inspirar e testemunhar belos feitos. Bjo, irmão.

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