sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

A hora certa


- Nela, não, nela o senhor não põe a mão! – berra Lavínia postando-se, braços abertos à frente da colega grávida de sete meses.

Soldados invadem o alojamento, abrem a porta a murros e pontapés, jogam ao chão os pertences das meninas, arrancam das paredes o conteúdo dos murais numa fúria insana como se, pessoalmente, tivessem sido ofendidos de morte por cada uma delas. Empurradas para fora do quarto, observam nos corredores os colegas com as mãos para cima, conduzidos em filas para interrogatórios intermináveis, cotucados por baionetas, enfiados em camburões que os levarão sabe deus para onde.

Trêmula, Percília dá um suspiro por sobre o ombro de Lavínia, surpresa por estar viva e incólume quando o último soldado fecha a porta do prédio atrás de si com as palavras:

- Desocupem a área, desapareçam! 

Foi o que fez. Imediatamente.

Catou o que tinha, socou na maleta, deu um rápido abraço na amiga, antes que as águas represadas da angústia e do pavor desandassem a rolar. O sentimento era de gratidão profunda por aquele gesto singelo que poderia ter significado a morte da companheira mas as palavras naquele momento não cabiam, eram palavras mudas que se acotovelavam em sua mente deixando no peito um aperto forte e a urgência de sair dali o quanto antes. Verificou que tinha dinheiro justo para pegar o ônibus para Curitiba. Comer, não comeria; mesmo porque o enjôo era a regra. Nem sabe como chegou à rodoviária; como um autômato percorreu o trajeto que fazia regularmente para ver o marido que trabalhava na capital paranaense. Buscou o telefone público para avisar que estava a caminho. Raul não entendeu bem, a ligação estava péssima, por precaução e intuição rumaria para o terminal rodoviário para esperar a chegada do ônibus que partia de São Paulo por volta do horário do telefonema.


No assento de número 19, Percília procurou posição. Desconfortável, a vasta barriga ocupava o banco todo, subia-lhe até o pescoço. O bebê que se mexera incansável por todo aquele longo dia, de repente sossegou, ajeitou-se para dormir. Para ela, o sono não veio. A estrada já era ruim naqueles dias, curvas fechadas, buracos, chuva forte. A cabeça rodava em solavancos, mãos acarinhando a barriga, os olhos cerrados. Uma hora lembrava da mãe e ansiava por tê-la próxima; num flash via Raul ao seu lado, preocupado e amoroso; em outro, vislumbrava Lavínia, para onde teria ido, nunca mais a veria, era certo. E Alberto e Ricardo, seus colegas de turma, engajados no movimento contra a ditadura que vira de soslaio sendo interrogados por três brutamontes armados? Imagens se sucediam no filme de sua insônia e no tranco do ônibus ao cair num buraco, suas coxas se enchem de água e começam as contrações. A primeira foi forte, ela não entendeu o que era, nem se deu conta de que estava molhada. Quando veio a segunda, entendeu: a bolsa estourou, vou dar à luz, o bebê vai nascer! Agora? No ônibus? Não, nem pensar.


 Olhou para os lados, dormiam seus companheiros de viagem, homens sérios a trabalho, nenhuma mulher por perto. Pela graça de Deus, a viagem seguiu por mais duas horas sem sustos, o nenê entendeu o comando da mãe e aguardou. Com o dia raiando, o veículo manobra e estaciona na estação de Curitiba. A primeira pessoa a colocar a cara para dentro do ônibus é Raul. 

O sorriso de alívio de Percília ao vê-lo faz dela a mulher mais linda do planeta e, para ela, condensada naqueles lábios, naquele olhar, no caminhar seguro em sua direção, Raul é a visão de todo o bem que existe na Terra.

- Pronto, tá chegando a hora, filho, agora você pode nascer.                                                       


        imagens da Internet                                                                                                                                                                                    

8 comentários:

  1. "Tão lindo. Chorei..."
    Elisa V

    ResponderExcluir
  2. "wonder who this was! adorei. atualíssimo."
    seawiever

    ResponderExcluir
  3. Oi Uxa
    obrigada
    voce fala do simples de modo profundo.
    Bjs
    Madú

    ResponderExcluir
  4. Noooossa! Essa estória deve ter acontecido tanto na epoca, né?
    Foi real?
    Bjks e obrigada por postá-la para mim
    Marina

    ResponderExcluir
  5. Cara Uxa,
    Boa noite!
    Os seus textos me chegam progressivamente melhor escritos.
    As frases ganham sinceridade. Clareamento.
    Fico feliz ao ver acontecer. A mim agrada.
    Eu me atrapalho com uma coisa específica que coloco no que você escreve.
    Parece-me que você obriga o texto a ter bondade/bondades.
    Isso acontece?
    Pode ser que seja alguma outra coisa.
    Mas é, mais ou menos, nessa linha.
    Abçs
    Cibele

    ResponderExcluir
  6. este texto é antigo, escrevi em 2010. ando sem inspiração, o temporal então, me dei conta de que já o tinha postado lá no início do blog. paciência, tinha esquecido. quanto às bondades, não as forço, acho que é meu estilo. é o que gosto de olhar na vida. outros apontam os cinismos da humanidade. estes me entendiam. bjs. boa semana e obrigada por seus comentários. uxa

    ResponderExcluir
  7. Muito bom...adorei bjs Paola

    ResponderExcluir
  8. Que conta lindo Uxa!! Adorei!
    Li com a respiração suspensa!
    Parabéns
    bj lu

    ResponderExcluir