Quero escrever a história de uma carta. A carta, sei qual é: o pedido de casamento feito por meu avô paterno à minha avó em 1887. Escrita numa caligrafia delicada, letras muito pequenas, caídas para a direita, com frases do tipo “ peço-lhe ter a bondade de guardar todo o segredo deste assumpto pois como sabe são negócio mui melindroso tanto para a s enhora como para mim”.
Não sei se conviria transcrevê-la toda ou não; dependeria de qual aspecto eu quisesse enfatizar: o teor da carta em si ou a história da dita cuja. Também não sei se escreveria na primeira pessoa. Está me ocorrendo a ideia de escrever esta história da perspectiva de uma árvore da praça que pode ter sido testemunha de todo o romance e do que veio depois. Vejamos como poderia ficar.
Num primeiro parágrafo a árvore contaria as circunstâncias em que a carta teria sido escrita, quanto tempo meu avô levou para ter a coragem de escrever àquela bela senhorita fazendo-a saber de seus sentimentos e intenções. Talvez contar dos olhares que trocaram antes de a carta ser escrita, os comentários com os amigos sobre bailes em que dançaram juntos, o beijo roubado debaixo daquela sombra.
O segundo parágrafo contaria o que se passou numa tarde preguiçosa, 10 anos depois do casamento realizado, quando a jovem senhora encontra, casualmente, a carta no fundo da gaveta de uma escrivaninha, enrolada com uma fita cor-de-rosa e coberta por papel de seda. Ela relembra o início de sua vida de casada, os sonhos que teve, os desencantos.
No terceiro parágrafo, uma de suas filhas, a solteira, poderia pedir ao pai autorização para guardar a carta, agora que a mãe estava morta. O pai dá a autorização, isto tudo acontecendo no banco da praça, à sombra da grande árvore, depois que viessem do enterro, braços dados, e sentam na praça para descansar antes de enfrentar o vazio. Esta filha seria a única que sobrara em casa e cuidaria do pai. É professora primária, adora fazer ginástica. O pai, em seu íntimo, no silêncio, recorda alguns momentos que tem como preciosos, da vida em comum, um dos quais pode ser mesmo a escrita da tal carta, tantos anos passados, ele então apavorado pela perspectiva de receber um não da amada senhorita.
No quarto parágrafo, a carta poderia cair nas mãos de uma sobrinha adolescente que não tem sensibilidade suficiente para apreciar tal legado. Às gargalhadas, lê a carta para algumas amigas, todas sentadas no banco da mesma praça ancestral. A árvore se contorceria ao escutar o deboche das meninas e faria cair sobre elas umas favas velhas e malcheirosas que as expulsariam dali. Ou então cairia nas mãos de um dos netos, filho de um dos filhos do missivista e este rapaz acharia conveniente perpetuar a carta encerrando-a numa bela moldura dourada, coberta por vidros de ambos os lados. A árvore teria visto o rapaz mostrando a carta para um conhecido depois de já enquadrada, aguardando o momento de ir para a parede, debaixo da fotografia do avô circunspecto, de cabelo branco cortado à escovinha.
O último parágrafo mostraria o filho deste rapaz perguntando ao pai que papel era aquele dentro de uma moldura tão linda ou então uma bronca severa da tia solteira na adolescente insensível e depois a supresa desta ao receber, ela mesma, a cartinha de um garoto a pedindo em namoro.
Mas não sei se escreveria isto tudo, se bem que segundo Manoel de Barros tudo o que não se inventa é mentira. Mas isto só vale para a poesia dele, afinal. Ou não?
Neste texto eu viajei, já que envolve pessoas que conheci e convivi. Bjs, Fernando.
ResponderExcluirBom que a viagem tenha sido boa!
ResponderExcluirTambém viajei... para dentro de mim, deste mundo familiar, tão familiar a todos nós e sempre com emoção e significados a desvendar.
ResponderExcluirAna
ameii
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