O ar quente pesa como saco de cimento em costas de criança. Um trovão escandaloso seguido de relâmpago ilumina a escadaria e a fivela lampeja chamando a atenção do homem deitado no degrau. Ele solta um bafo bêbado, estica a mão escura, olha a fivela dourada, olha o céu. A chuva começa a despejar gotas gordas que ele bebe botando a língua para fora. Deixa que lave a fivela e a lambe como se a água da chuva não bastasse para a limpeza que pretende empreender; depois, esfrega o metal com força, num movimento curto e ritmado até que o brilho se fixa.
Tira da cintura a corda que segura as calças largas, desmancha o encordoamento. Dois fios mais finos faz passar pela fivela de um lado e de outro e acaba num nó. Cinto novo, sai pela rua a assobiar, mãos nos bolsos, largas passadas. Nas poças dágua faz questão de pular para erguer um chafariz. A chuva escorre sobre o rosto e o fato; fecha os olhos, puro desfrute.
A moça, cabeça baixa, vem caminhando pela rua depois de terminado o namoro, na rodoviária. A chuva cai forte batucando sobre o guarda-chuva, os olhos também chovem. Decidida a se anestesiar, ela se entrega à barulheira, faz suas passadas entrarem no rítmo, perde a visão do que possa estar à frente.
A colisão é prevísivel. Eles vão se atropelar, claro! O bêbado e a abandonada. O cachorro que espreita o movimento, deitado na varanda da casa, dá um latido sonoro alardiando o perigo. Não ouvem, nem ele, nem ela, submersos em chuva e fantasia.
O encontrão os arranca dos sonhos. Enraivecidos com a má vontade do destino, alteiam as vozes para culpar um ao outro. Os olhares se cruzam, ela vislumbra por trás da sujeira um nobre olhar. Será um príncipe? Caem imediatos num riso solto e longo. Ao findar, o homem se apresenta: Bernardo das Dores. Ela estende a mão: Marina. Das Alegrias.
Aquele encontrão destravou a roda do destino. Bernardo achou, naquela mesma tarde, um emprego no circo. Marina, ao chegar em casa, recebeu a vista inesperada do amigo de infância que a levaria a conhecer um grande amor.
O cachorro olha a cena sem desconfiar de nada.
set a dez 2010
Comeco de ano sempre tras um carinho renovado e otimista em relacao ao destino. Adorei a ideia da blog. Bjs saudosos Ju
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