sábado, 31 de março de 2012

Abrir a caixa


Já eram seis da tarde do dia da missa de sétimo dia, quando enfim Marta achou tempo para entrar no consultório do pai. Há anos não fazia isto. Girou a chave na fechadura, abriu a porta, procurou o interruptor. Assim que o acionou, uma das luzes iluminou um porta-retratos num canto da estante. Nunca reparara, a luz caía exatamente sobre a foto que ela dera ao pai no dia da formatura. Encheu o peito num suspiro. Estava absolutamente só agora. 
Os olhos percorreram a estante devagar tateando objetos conhecidos, a foto do casamento, o cristal, manuais de medicina, o busto de Louis Pasteur, placas de prata. Havia ainda uma caixa de madeira marchetada que ela não conhecia. Alcançou-a e surpreendeu-se com o peso. Abriu. Vazia. 
Virou-a de lado, de cabeça para baixo, tornou a virar algumas vezes até que tocou um ganchinho e o fundo da caixa se abriu despejando ao chão um volumoso maço de cartões. Marta agachou-se para apanhá-los, movimentos atrapalhados. Juntava alguns para soltar outros, a operação levou um tempo interminável. Finalmente sentou-se à escrivaninha para lê-los.
Firenze, Paris, Berlim, Berlim, Natal, Natal, Natal, Natal, um após outro, sempre o mesmo final: Sua filha, Irina
Um aperto no peito, um gosto estranho na boca, um sentimento totalmente inexplorado tomou conta de seu corpo.



imagem da Internet 

sexta-feira, 23 de março de 2012

Busca


Casa pro sem teto
Terra pro índio


Vogais pro alfabeto
Porta pra chave


Busco a tampa pra panela
O cadarço pro tênis
O rodo pro balde

A máscara pras olheiras
Busco
O livro pra cabeceira

Busco o professor para o aluno
Busco a palavra que o toque

A música pro silêncio
Busco o silêncio na música

Cabelos pro pente
O nada na mente

O descanso
O sono

                                            Busco um tempo
                                        Mais lento
                                 Longas horas
                            
                                                            
                                             Busco um espaço
                                        Mais próximo
                                  Um encontro
                           



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sexta-feira, 16 de março de 2012

Escolha seu final

O barbeiro sorriu ao ver a velha chegar na barbearia. Ela pediu que lhe cortassem o cabelo e lhe fizessem a barba. Parada na porta, tinha um ar tranqüilo; terminava de chupar uma manga direto da casca. Não estava mal vestida, pediu um gole de café. Ele mostrou a mesinha onde ficava a garrafa e apontou para o aviso “jogue os copinhos no reciclável”. A mulher tomou o café enquanto olhava seu perfil no espelho.
A barbearia ficava numa esquina movimentada. Logo entraram outros clientes. Ela não esperou o convite, jogou depressa o copinho no lugar indicado e sentou numa das cadeiras. 
O barbeiro chamou sua mulher, magra como brisa. Explicou. A mulher disse: Tudo bem, vou pegar minha tesoura.
A velhota lambia dos beiços a saliva com gosto de café. Na margem do espelho, um cavalheiro olhava de soslaio. A cara queria parecer indiferente porém, não escondia um espanto, um certo nojo até. 
O farol da esquina apagou, começou uma buzinação insuportável. A velha aguardava paciente como faquir. Apalpava o rosto, puxando os tantos fiozinhos de barba que apareciam em seu queixo. Compridos, lembravam nuvem de chuva. 
Chegou a mulher do barbeiro cheirando a chiclete tuttifrutti. Molhou e cortou o cabelo da velhinha. Ajeitou-o com escova e secador. Depois, virou a cadeira de costas para o espelho, fez a mulher recostar a cabeça num apoio e começou a cortar os fios da barba com a tesoura fina. Tirava com pinça o fiapo sobrante. A velhinha festejava cada um que desaparecia. Sua alegria transbordava pelo corpo todo.

Final um: Ao final, sacou da bolsa umas notas amassadas, o escuro da boca sorriu, pagou e foi atravessar a rua. Um ônibus desvairado passou por cima dela. Pode parecer mentira mas não é.
Final dois: Ao final sacou da bolsa umas notas amassadas, o escuro da boca sorriu, pagou e foi atravessar a rua. Do outro lado, apoiado num guarda-chuva, um velhinho careca a aguardava. De braços dados, seguiram rua abaixo para desaparecerem dentro de uma loja. De alianças. 
Amor e Morte, ambos demandam preparação.








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sexta-feira, 9 de março de 2012

Brincando com o A


Era o quarto dia do mês de março, idos de quarenta e quatro, antiga vila de Guarará.
Isaura, Natália e Ismália catavam aves para jantar.
Foguearam a fornalha, caladas, pálidas, plácidas. 
Facas afiadas rasgaram as carcaças, separaram as patas; jogaram as aves na água ardente, arrancaram-lhes as penas. Lavaram as partes, tiraram-lhes as tripas, despejaram-nas nos baldes. 
Limparam a área, rumaram para o largo lago da rua d’África.
As águas espelhadas convidavam à camaradagem. 
Nas margens amplas, jogaram malha, pularam corda, desenharam artes. Tiraram as saias, nadaram no lago, entraram na mata, lavaram a alma. 
Há mágica debaixo das árvores copadas.
De volta à casa, à carne acrescentaram galhos aromáticos. A fornalha ao máximo, deitaram as aves aos tachos. O ácido, o áspero queimaram ao ápice.
Jantaram as aves com algas, alfaces, tomates, abacates. Tomaram garapa em cálices.
Imaginaram-se fadas, amadas, beijadas, anunciadas nos jornais nacionais.
Brincaram de palavras cruzadas, cantaram toadas, deitaram. 
Cansadas.


sexta-feira, 2 de março de 2012

Hai Kai para a alamanda



                                                A terra nova
                                           As folhas verdes
                                       O sol, a água

                                            Segura o ar
                                               O inchado losango
                                                   Espera a hora

                                    Como alto-falante
                                            A flor da alamanda
                                                     Soa cor-de-rosa

foto: Remo A. Pierri