sexta-feira, 29 de julho de 2011

O corte



Num canto do jardim deixado por si só por vários meses estava a goiabeira.O velho jardineiro apontou-a e declarou: esta pode ser cortada, posta abaixo, tá que é  só bicho. 
A moça tremeu.
Botar abaixo a goiabeira. Foi no estômago que escutou. 
As outras árvores, a mangueira, o pé de limão, o abacateiro estavam cheios, pedindo poda, por que não também a goiabeira?
Bichada.
Ora, goiabeira, parece, já nasce bichada. Todo mundo que viu uma de perto, que já provou seu fruto, reparou que as folhas, quase sempre, têm pulgões, furinhos, são como renda. E bicho de goiaba é goiaba, todo mundo também já escutou...

Por que botar abaixo a goiabeira?
O velho foi firme. Tem hora que é preciso cortar. Os bichos vão emprenhando a terra, as outras árvores vão sentir.
A moça não quis concordar. 
Não estava no tempo de saber. 

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Tios


Meu tio


Bastava começarem a varrer a casa para que o irmão de minha mãe iniciasse a sessão de espirros. O nariz escorria, ele se assoava, tossia e cuspia num sem-fim igual ao de um hamster na roda giratória. Seu estado de ânimo era tal que sobravam respingos para toda a família.
Meu irmãozinho, por alguma razão mais do que secreta, adorava este tio. Chegava-se a ele todas as manhãs contando as descobertas que fazia:
- Tio, você sabe o que eu descobri? Que se você corta o rabo da lagartixa ela continua viva e o rabo se mexe...
- Grande coisa! Experimenta cortar o rabo do jacaré – era a resposta dele.
- Tio, você sabia que eu siscondi debaixo da mesa e a minha mãe nem me achou?
- Me escondi é que se fala, e sua mãe não te achou porque não quis, é claro que ela sabia que você estava lá; você sempre se esconde no mesmo lugar, acha que ela é boba?
Meu irmão cresceu e foi ser médico. Especializou-se em alergias.

Minha tia

A mulher dele tinha um sorriso maroto. Ele espirrava de um lado, ela nos abraçava de outro. Não tinham filhos. A cada desresposta de meu tio, tia Filipa pegava meu irmão no colo e ouvia com atenção todas as explicações que ele dava. Fazia perguntas, esticava o assunto e o incentivava a conclusões ainda mais espetaculares. 
Levava-nos passear no bosque que era o jardinzinho ali perto de casa e o enchia de duendes, gnomos e fadas. 



Também nos fazia esconder das bruxas e dos lobisomens. Embaixo de uma folha, nos mostrava um duendinho tocando violino, entrávamos dentro do pequeno instrumento para ouvir a melodia em eco; em cima de uma flor, nos apontava a fada mais linda de cabelos vermelhos e roupas de orvalho. 
Debaixo de suas saias era seguro: tudo ficava invisível. 
Tia Filipa tinha sempre uma solução para nossos problemas e fazia uns bolinhos de chuva tão bons que a gente torcia para que chovesse.
Eu, quando cresci, fui estudar botânica mas gosto mesmo é de escrever.


imagens da internet

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Dona May



Dona May não tira um chapéu de abas moles que lhe enfeita o rosto enrugadinho. Começa os dias na varanda do apartamento movendo o pescoço devagar, para cima e para baixo, para um lado e para outro. Alonga os braços, lubrificando as articulações dos ombros. Panturrilhas e pernas são ativadas quando eleva os calcanhares trinta vezes. Gira um bambolê invisível para trabalhar as articulações da bacia. Seu corpo precisa estar em forma.

Por muitos anos foi chefe de laboratório. A renomada empresa de cosméticos depositava em dona May confiança total. Nissei, de voz mansa e passos miúdos possuía um talento descoberto e reconhecido em seus primeiros anos de firma. As misturas de ervas que propunha invariavelmente levavam a perfumes surpreendentes para cada ítem das várias linhas de produção. Dona May sabia dosar elementos, sabia equilibrar, na medida certa, fragrância e função. Creme de rosto não pode cheirar como desodorante, nem xampoo como esmalte. Homens, mulheres, meninos e meninas podem ter nuances tão distintas quanto a variedade de perfumes oferecidos pela sábia natureza: jasmim, lavanda, poejo, menta, alecrim, alfazema, dama da noite, melissa, anis, narciso, noz moscada, erva-cidreira, camomila, pinus, rosa, sálvia, íris, heliotrópio, papoula, cada um com sua personalidade.

A ternura que põe em seus movimentos ao conduzir cada passo do marido, vítima de grave AVC, é o perfume que trabalha hoje.


A foto é do filme Poesia, lindo, vale a pena ver.

O despertar

                                  



Presa ao verde pedestal, dorme tranqüila a papoula em cor de creme. Escorrega-lhe da cabeça o chapéu, trinca de folhas. Ela acorda. Joga a cabeça para trás, iniciando lento alongamento. Abre bem os braços e estica-se na total extensão de seus músculos de pétalas. Insiste e leva os braços para trás, deixando à mostra um sol alaranjado, minúsculos raios ensaiando a largada. Finalmente retoma a postura natural, aceitando suas brancas rugas. O exercício da manhã já foi feito, começa a lida diária: trabalhar o perfume.


sexta-feira, 8 de julho de 2011

Um Causo

Conversavam à beira do fogo, esperando o sono.
- Como é mesmo sua graça?
- Marcondes. Ambrósio Marcondes, um seu criado.
- E eu sou Justino do Sul. Muito honrado. Saúde! E depois do Rio, o senhor veio voltando pra Minas?
- Ah, sim. E é por isto que eu tenho de comemorar. Imagine o amigo que semana passada quando eu mais Zé Tomé estávamos lá pros lados de Campos, atravessando aquelas florestas de araucária, as mulas resolveram empacar. Não havia meios de elas saírem do lugar. Já eram umas 5 da tarde, ia escurecer loguinho e eu queria chegar com elas na fazenda do Zé Rodrigues que era ali perto, o senhor deve conhecer. As mulas se agitaram, fizeram um cerco, começaram a escoicear pra todo lado. E era um relincho só, uma barulheira dos diabos!
Eu saí com Zé Tomé atrás de onça. Quando mula fica assim é onça, na certa. E procura que procura e nada. Entramos mata adentro, procurando os rastros pelo chão. Foi aí que o Zé Tomé levantou os braços pro céu pedindo ajuda de Jesus Cristo. E lá estava ela, em cima da árvore. Uma baita pintada cercada de macaquinhos brancos. Já viu onça cercada de macaquinhos? Pois é, aquela estava. E os macaquinhos não tinham boa cara, não. Ferozes, briguentos. A onça, de olhos vermelhos, se preparou para dar o bote em Zé Tomé. Eu vinha mais atrás e via bem a cena. Empunhei minha carabina e mirei – POW!!! – atirei no peito da pintada que caiu ao pé da árvore. Os macaquinhos ficaram como loucos. Pularam em cima da onça, lambendo a bicha, gritando, fazendo um escarcéu. De repente, o silêncio. Olharam pra nós e foram se chegando devagar. Começamos a suar frio. Era uma penca de macaquinhos; eles pareciam estar dominados pelo DEMO, sei lá... Aquilo não era animal, parecia gente mesmo! Zé Tomé olhou pra mim, eu olhei pra Zé Tomé e, num instante, esporeamos nossas éguas e nos pusemos a correr de volta pras nossas mulas.
- Mas isto foi burrada, amigo, os macaquinhos não vieram tudo atrás?
- E se vieram, companheiro! Olha, aquilo não era coisa de Deus, não, era coisa do Demônio! As mulas querendo se soltar das cordas, as nossas éguas passarinhando e aquele mundaréu de macaquinhos pulando nas mulas, na gente, mordendo os arreios, as selas, machucando de chorar as pobres mulas.
- E como é que acabou a aflição?
- Ora, começamos a ouvir uns silvos agudos e nisto os macaquinhos se afastaram. Corriam uns sobre os outros se atropelando e entraram na mata outra vez. Nós ficamos encafifados...O que será que era aquilo? Acalmamos as mulas, levamos elas pra beira do rio, prendemos outra vez nas cordas e fomos dar uma busca por ali.
- E então?
- Procuramos um bocado de tempo e nesta altura já era noite mas estava clara de lua. Já íamos desistindo quando Zé Tomé descobriu um índio velho numa choupana cercado dos tais macaquinhos. Ficamos escondidos espreitando. O índio balançava um chocalho, dizia um palavrório e passava o chocalho nas costas dos macaquinhos que iam se acalmando. O cheiro era forte. Em seguida eles se reuniram atrás da choupana. Lá estava a onça ferida de morte mas ainda respirando. O índio limpou as feridas e colocou umas plantas umidecidas em cima dela. Continuou a falar as palavras estranhas e assim ficaram. Resolvemos voltar pras nossas mulas. A noite já ia alta.
Quando amanheceu juntamos a mularada e seguimos viagem. Já tínhamos caminhado um bom pedaço quando escutamos outra vez aqueles silvos fininhos. Olhamos para trás e vimos o índio velho ao lado da onça seguido de uma fileira de macaquinhos brancos. Paramos, apeamos e esperamos a comitiva.



O índio se aproximou, começou a dizer uma lenga-lenga e fazer umas danças. Dali um pouco, começamos a sentir umas dores terríveis no peito. O sangue transpassava nossas roupas grossas e ia manchando o couro do cinturão. Perdemos o ar e os sentidos. Não sei quanto tempo passou. Só sei que quando acordamos, éramos só nós, nada de mulas. Nada de mula, perdemos todas...
- Mas que causo estranho, seu Marcondes. Nunca vi falar de nada parecido. Por que que o senhor tá querendo comemorar afinal?
- A Vida, seu Justino, a vida que me restou. Mula, a gente compra outras.

sábado, 2 de julho de 2011

Sobre o Magma de Guima *

“Todos foram saindo, de mansinho
tão calados, que nem sei se fiquei mesmo só”

Na sala de chão batido o sol deixa um rastro comprido formando um triângulo longilíneo. As cadeiras arranjadas à volta num círculo imperfeito ainda respiram o ar dos que acabaram de sair. O professor Vicente está de pé num canto, olha sem ver para a folhinha dependurada na parede, entretido que está com a paisagem de um futuro escondido em seu coração. Um futuro em que todos são livres, donos de seus destinos. Os que saíram são homens e mulheres simples cuja essência é o desejo de ensinar o que sabem. O que sabem não está nos livros ali dispostos. O que sabem está nos calos de suas mãos grossas. A tarde vai entrando porta adentro e o empurra dali.        




“ O mato está cheio
de caminhos frescos que eu não posso enxergar”

Vicente encosta a porta e toma o rumo da mata. A trilha é larga no início e aos poucos afina. O chiar dos passarinhos, o lusco-fusco do sol entre as árvores, as sombras rendadas das folhas, o cheiro verde e úmido que inala, o canto triste de uma cigarra adiantando a hora, tudo o envolve. O mato, ele sabe, é seu melhor conselheiro. Percorre a trilha, atentando para as rugas dos troncos, os meandros das raízes, o desenho das folhas. Sente o movimento dos pequenos animais pelo ruído que emana do chão e do alto.
Seus olhos, borboletas, pousam na bromélia cor de fogo pendurada na árvore. O redondo alongado de suas pétalas, a cor escaldante, a gota de orvalho luzidia como diamante o transportam para o tempo em que amou Maria. Seu peito bate mais forte. Maria saltou do fundo do mato em forma de flor e parou ali mesmo à sua frente, a boca entreaberta, o olhar profundo pedindo beijo. Quase ensaia uma dança.


“Meu desejo corre a ti com velas enfunadas...
Podes dar-lhe um porto sem nenhum receio.
Ele não traz âncora”.

Vicente dá meia volta. Corre a trilha no sentido oposto, as mãos apertando os dedos. Abre a porta da cabana, acende o lampião e começa a escrever. Fala de uma saudade, uma saudade madura que conhece bem o que lhe encanta em Maria. Fala do cheiro de flor que ela transpira, fala da água de seus lábios, do tom de sua voz, do seu andar redondo, do toque de sua pele e da luz de seus cabelos. Fala das palavras que trocaram, do desejo de ambos que os liberta. Encontraram, sim, um jeito de amar, competente, um jeito de amar que se junta ao outro por vontade de aconchego.
Maria, receba-me que eu nem sabia que o que buscava era a ti.

“Sombras de amores
em bailado longínquo, num palco sem fundo como um fundo espelho”

A caneta enche o papel relembrando o tempo antes da partida. Mais do que no momento vivido, as danças do amor se entrelaçam e mostram do que são feitas. No mato, não há saída. Falar-se-ão pela alma, pelo querer que transborda das margens do papel, que dispensa a matéria, que alcança o alvo, direto em seu cerne.
E a resposta vem na pele de Emília que entra, simples, pela porta aberta. Vê o homem de costas debruçado sobre a mesa e o abraça. Sincera. Corpo. Carne. Toque. Calor. No vento dos lábios, um riso escapa, alegria de água correndo em riacho.
As perguntas, as saudades, se perdem nos cabelos pretos de Emília; que agora é hora de descanso.

“ E a janela se fecha, prendendo aqui dentro
o raio suave que prendia a lua”
Lá fora, a noite.


* Todas as epígrafes vem do livro Magma, o último de Guimarães Rosa, publicado após sua morte.
** As fotos são do Remo