“Todos foram saindo, de mansinho
tão calados, que nem sei se fiquei mesmo só”
Na sala de chão batido o sol deixa um rastro comprido formando um triângulo longilíneo. As cadeiras arranjadas à volta num círculo imperfeito ainda respiram o ar dos que acabaram de sair. O professor Vicente está de pé num canto, olha sem ver para a folhinha dependurada na parede, entretido que está com a paisagem de um futuro escondido em seu coração. Um futuro em que todos são livres, donos de seus destinos. Os que saíram são homens e mulheres simples cuja essência é o desejo de ensinar o que sabem. O que sabem não está nos livros ali dispostos. O que sabem está nos calos de suas mãos grossas. A tarde vai entrando porta adentro e o empurra dali.
“ O mato está cheio
de caminhos frescos que eu não posso enxergar”
Vicente encosta a porta e toma o rumo da mata. A trilha é larga no início e aos poucos afina. O chiar dos passarinhos, o lusco-fusco do sol entre as árvores, as sombras rendadas das folhas, o cheiro verde e úmido que inala, o canto triste de uma cigarra adiantando a hora, tudo o envolve. O mato, ele sabe, é seu melhor conselheiro. Percorre a trilha, atentando para as rugas dos troncos, os meandros das raízes, o desenho das folhas. Sente o movimento dos pequenos animais pelo ruído que emana do chão e do alto.
Seus olhos, borboletas, pousam na bromélia cor de fogo pendurada na árvore. O redondo alongado de suas pétalas, a cor escaldante, a gota de orvalho luzidia como diamante o transportam para o tempo em que amou Maria. Seu peito bate mais forte. Maria saltou do fundo do mato em forma de flor e parou ali mesmo à sua frente, a boca entreaberta, o olhar profundo pedindo beijo. Quase ensaia uma dança.
“Meu desejo corre a ti com velas enfunadas...
Podes dar-lhe um porto sem nenhum receio.
Ele não traz âncora”.
Vicente dá meia volta. Corre a trilha no sentido oposto, as mãos apertando os dedos. Abre a porta da cabana, acende o lampião e começa a escrever. Fala de uma saudade, uma saudade madura que conhece bem o que lhe encanta em Maria. Fala do cheiro de flor que ela transpira, fala da água de seus lábios, do tom de sua voz, do seu andar redondo, do toque de sua pele e da luz de seus cabelos. Fala das palavras que trocaram, do desejo de ambos que os liberta. Encontraram, sim, um jeito de amar, competente, um jeito de amar que se junta ao outro por vontade de aconchego.
Maria, receba-me que eu nem sabia que o que buscava era a ti.
“Sombras de amores
em bailado longínquo, num palco sem fundo como um fundo espelho”
A caneta enche o papel relembrando o tempo antes da partida. Mais do que no momento vivido, as danças do amor se entrelaçam e mostram do que são feitas. No mato, não há saída. Falar-se-ão pela alma, pelo querer que transborda das margens do papel, que dispensa a matéria, que alcança o alvo, direto em seu cerne.
E a resposta vem na pele de Emília que entra, simples, pela porta aberta. Vê o homem de costas debruçado sobre a mesa e o abraça. Sincera. Corpo. Carne. Toque. Calor. No vento dos lábios, um riso escapa, alegria de água correndo em riacho.
As perguntas, as saudades, se perdem nos cabelos pretos de Emília; que agora é hora de descanso.
“ E a janela se fecha, prendendo aqui dentro
o raio suave que prendia a lua”
Lá fora, a noite.
* Todas as epígrafes vem do livro Magma, o último de Guimarães Rosa, publicado após sua morte.
** As fotos são do Remo