Dedilha minhas costas com grande precisão, pressionando os pontos mais doídos e desfaz os nós. Empenha-se com a maior dedicação na solução de cada obstáculo que o meu corpo apresenta. Meus músculos e ossos formam um tabuleiro de xadrez sobre o qual ela faz as jogadas muito bem pesadas, muito bem pensadas. O corpo sente dor e alívio, alternadamente. Minha cabeça viaja; lembro que se aproxima o dia das mães e que não vou ver meus filhos neste dia; ocorre-me perguntar-lhe se ela tem a mãe viva.
Não. Morreu quando eu tinha pouco mais de dois anos. Explicou-me porquê mas não guardei. Meu pai ficou muito deprimido, me levou para morar com minha avó; o meu irmãozinho que tinha 4 anos, deixou com a outra avó. Aperta as para-vertebrais de cima abaixo. Meu pai ficou muito doente, depois sofreu um desastre, ficou cego de um olho e acabou num hospital. Lá ele conheceu uma enfermeira. Casou-se com ela uns anos mais tarde. A família voltou a se reunir sob o mesmo teto, sob a tutela da Ana. Com ela meu pai teve mais três filhos: Alcione, João e Beatriz. Beatriz morreu menina, de engasgo. Ana ficou arrasada, meu pai também.
Eu também fiquei arrasada. Suei de dor, os dedos de Delma encaravam a lateral das minhas vértebras. A voz dela vinha assim meio em suspiros por conta da força que punha na massagem.
João nasceu com um problema nas vias urinárias que só foi diagnosticado aos 15 anos. Ana vivia para este filho. As mãos de Delma descobriam uma série de nós na altura da toráxica. Eu me doía junto com a dor de Ana. A dor para alguns vem em penca. A certa altura, este meu irmão precisou de um transplante de rim. O rim de ninguém da família foi compatível; ele se negava a esperar na fila, mas colocaram seu nome. Quando chegou sua vez, passou o rim para uma criança de um ano, durou mais uns meses e se foi. Disse que já tinha vivido bastante, que queria dar a chance para a menininha. Em meio aos apertões, vou pensando que o rapaz talvez quisesse compensar a mãe pela dor que sentira uma vez e que ia sentir novamente. Sei lá.
Vou engolindo a história trágica, abismada pelo jeito tranqüilo como me é contada. Delma continua me alongando e desfazendo nós. Eu escutando os nós que teve de desfazer em sua própria vida. Ela e o irmão mais velho cresceram sem grandes traumas, parece; aprenderam a se virar. Alguma força este pai conseguiu lhes passar. Um homem analfabeto que entendia de plantas, chás e criação. Delma fala dele com orgulho. E com enorme carinho. E Ana que viveu tragédias com seus próprios filhos foi muito boa para os enteados. Apegou-se a Deus e aos santos.
Meu pai gostava de dançar, convidava Ana. Ela nunca que ia. Ele ia sozinho ao forró e voltava de madrugada. É, o homem conseguiu se recuperar, pensei, conseguiu achar alegrias na vida. Quando eu estava para fazer 19 anos, entendi que eu não queria mais ficar em Minas. Precisava estudar, queria conhecer o mundo. Meu pai queria porque queria que eu casasse com meu primo. Muitos da minha família se casavam entre primos. Eu não queria aquilo, de jeito nenhum. Além disso, meu primo cheirava mal e gostava de beber. Deus me livre. Peguei nas Listas Amarelas uns cinco telefones, assim ao acaso. Liguei e expliquei: Tenho 19 anos, sou de Minas e quero ir pra São Paulo pra estudar e trabalhar. Preciso de um lugar pra morar, posso morar na sua casa? Meu queixo não caiu porque estava apoiado na maca. Fiquei estupefata! Só aos 18 pra fazer uma coisa destas, só mineiro para achar que o mundo é bom assim...
Duas pessoas me atenderam e uma delas disse que eu ligava em boa hora, que o estudante americano que morava na casa ia voltar para os EUA e o quarto dele estaria livre, que eu podia ir. Era em Osasco, arrumei minhas coisas e vim. Me fez virar de frente e começou a tocar os pés e as pernas. Meus pés doíam como se eu tivesse caminhado com ela até São Paulo.
Logo arrumei emprego numa gráfica, em Minas eu trabalhava com jóias. A família era um amor, gente que adorava estudar. Eram três filhos, dois rapazes, uma moça e a mãe. Fizeram com que eu estudasse, terminei o colegial. Com o tempo, me tiraram do quartinho lá de fora e me botaram pra dentro de casa. Entrei para a faculdade de Fisioterapia, me formei, fiz curso nos EUA, agora eu cuido deles todos. Cuida de mim também. Há tempos meu pescoço não soltava tanto. E ao contar sua história me dá mais, muito mais do que uma massagem.
Consegui comprar meu carro, minha casa, chamo a eles de irmãos e a ela de mãe. Todos os fins de semana eu os visito, são a minha família daqui. Continuo indo pra Minas ver meu pai e minha madrasta mas aqui em São Paulo também tenho uma família. No fim do ano nós vamos pros EUA ficar com meu irmão que mora lá, vamos passar o Natal juntos e ele está arrumando um curso pra eu fazer.
Meu Deus, eu penso, as lágrimas querendo escapar pelos olhos, que incrível! Que história! Penso na mãe dela, a verdadeira, a que morreu quando ela era nenê... Junto dela estes anos todos, só pode ser.
tava numa agonia com medo de não ter final feliz, ja´que era a vida como ela é. Mas essa história é coisa de filme americano, faz a gente acreditar um pouco mais nas pessoas.
ResponderExcluirespero que o seu dia das mães seja Feliz, como ou sem eles por perto. Basta o fato de ser mãe de pessoas tão bonitas como eles, casados com outras pessoas tão bonitas quanto. um beijo
tica
Brigs, Tica, não é mesmo uma história digna de ser contada? Já saí da massagem escrevendo.
ResponderExcluirMeu dia das mães vai ser muito feliz, sim, acho que até vou conseguir ver os meninos.
Bjão
U
Mais uma vez, obrigadão pelo presente de sábado.
ResponderExcluirFeliz dia das mães, Uxa !
Beijinhos
Mara
Uxa, querida, um pouco de poesia é bom sempre e seu texto para o dia das mães é uma obra de arte!
ResponderExcluirPara você, um ótimo dia das mães, iluminado, como seu coração de artista, ao som da Ave Maria. Um graaaande beijo e todo meu carinho.
Ana
Mãe!
ResponderExcluirFeliz Dia das Mães!!!!!!!!!!!!
Te amo muito!
Beijos
Dani
Querida Uxa
ResponderExcluirTenho lido seus textos e fico encantada com a delicadeza que você escreve.
Tenho me emocionado muito.
Muito obrigada amiga!
Linda
Uxa querida, feliz dias das mães!
ResponderExcluirAdoro suas histórias!
bjs Cris
U, vc realmente tem o dom de escrever! Como basta estar aberta às pessoas para sair enriquecida, até mesmo das experiências cotidianas. Continue partilhando conosco! bj Ruth e Zeca
ResponderExcluirAdorei essa!!
ResponderExcluirHistória incrível e muito bem descrita, com aquela fluidez que eu aprecio tanto nos seus escritos.
Remo