Vestido verde-Brasil, decote em V de babados miúdos, colo alto. Quem a vê não imagina os caminhos que os cabelos a fizeram percorrer.
A mãe adotiva penteava para trás aqueles cabelos com um pente cor-de-rosa cuja visão lhe causava calafrios. O espelho refletia a menina morena clara, olhos amendoados, nariz quase arrebitado que em nada parecia com a mulher negra que a penteava. A mãe lhe repartia o cabelo e puxava, uma para cada lado, duas marias-chiquinhas. Depois as enrolava numa rosca. Em cada puxão, uma pergunta: quem será minha mãe verdadeira, por que meu cabelo é tão ruim? O sofrimento lhe arrancava lágrimas e fios. Ter os cabelos desembaraçados era tentar desvendar mistérios, os mistérios de sua origem.
Buscando pertença no mundo conhecido, a fase das marias-chiquinhas evolui para a do trançado. Blackpower. Finas trancinhas penteadas em curva de nível são enfeitadas com contas coloridas e a cabeça se transforma numa paisagem de pequenas flores que emoldura o rosto delicado. Longas horas frente ao espelho entre as quais Luciane estuda e se compenetra. Sua alma sabe que tem conquistas a realizar.
Na adolescência, o desejo de conhecer a impalpável origem alterna-se em busca e revolta. Numa noite, sem aviso, a mãe se despede para sempre. A moça veste preto da cabeça aos pés, pendura no peito uma cruz e decide que o cabelo será alisado. Se não sou negra, sou branca.
Não bastasse a dureza da vida, os métodos de alisamento passam por instrumentos de tortura.
O resultado pouco consolador mais a saudade doída daquela que a criou dão o tom rebelde daqueles anos. Para compensar tantas faltas, não passa um dia sem namorado. As paixões chegam e partem como ônibus para a escola.
Um dia quis pintar os cabelos, clareá-los. Amanhece no salão, o coração pulando de excitamento. Os cabelos insistem em alguma lição muito difícil de aprender; descobre-se alérgica à tintura.
Fica praticamente C-A-R-E-C-A. As lágrimas, desta vez, vêm de enxurrada.
Por natureza tem garra, cuidados, doçura e defeitos; como você e eu.
Um dia quis pintar os cabelos, clareá-los. Amanhece no salão, o coração pulando de excitamento. Os cabelos insistem em alguma lição muito difícil de aprender; descobre-se alérgica à tintura.
Fica praticamente C-A-R-E-C-A. As lágrimas, desta vez, vêm de enxurrada.
Implante, então, ela persiste. Na altura das têmporas, dando a volta na cabeça toda, de centímetro em centímetro, planta chumaços de cabelo natural comprado em casa de confiança. Uma operação de horas, movida à esperança, transforma a cabeça careca numa cabeleira cheia de fios sedosos, levemente cacheados que, porém, não aceitam cafuné. A base do implante apresenta saliências desconfortáveis. Mas não se vê...
Dia de sol, a moça floresce ao balançar os cabelos num samba; dengosa, entra no mar, gingando as ancas. Nas águas salgadas, os cabelos endurecem como crina, cachos espetados indicando os quatro pontos cardeais.
M-E-D-U-S-A.
Amigas ninfas se empenham em desembaraçá-los.
Maldição: a crina tem de ser cortada com tesoura afiada e o implante retirado em outra operação, interminável.
A família se cotiza, compram cabelos verdadeiros.
Verdadeiro é diferente de natural. Aprenda isto. Mãe verdadeira cuida, mãe natural é aquela de quem se herda a natureza.
Escolhe o melhor profissional. Sai do salão com outro implante de fartos cabelos, longos até as costas. De seu, a base, o suporte para aquela maravilha que, desta vez, aceita afagos.
No caminho para a casa, toma conta da cabeça uma coceira insuportável. O espelho, que não sabe mentir, revela a L-E-G-I-Ã-O D-E L-Ê-N-D-I-A-S abrigadas em cada centímetro do implante, escondidas em cada fio de cabelo.
Cabelos verdadeiros têm defeitos, têm vida, mães também.
Há que retirar o implante, tratar os cabelos todos, os da base, os naturais. Suas mães também lhe haviam sido arrancadas. Os cabelos, por sorte, puderam ser reimplantados.
A moça se conforma em gastar horas para cuidar da cabeleira. Uma entidade à parte, um outro ser acoplado a ela, um encosto, com necessidades particulares.
O tempo de viver tudo o que queria tinha-o de esticar como esticava os fios enrolados do cabelo da infância, puxados em marias-chiquinhas.
Coube tudo nesses puxões. Coube a faculdade, os estágios, os primeiros empregos, os amores; coube um primeiro filho, um segundo. Por eles, a vida deu meia-volta.
Agora ela é a MÃE.
Por natureza tem garra, cuidados, doçura e defeitos; como você e eu.
Cortou os cabelos bem curtos pois, além das próprias, tem hoje 500 crianças a mais com quem se preocupar. E a paixão por elas renasce a cada dia junto com os fios de cabelo. Desde que assumiu a diretoria, a ONG só ganhou em vigor e dinamismo. Muito aprendeu sobre a vida ao lidar com cabelos e mães. Nem tudo se doma. Às vezes temos de aceitar as coisas como são e tirar delas o melhor partido.
Esta é a história de Luciane Vania Ferreira, diretora do
Centro Comunitário e Creche Sinhazinha Meirelles, Rio Pequeno. SP.
gostei de passar por aqui. Bjs
ResponderExcluirVontade de domar no entanto, pode ser transformadora... se e quando, a arrogância do "brincar de Deus" fizer as pazes com a sabedoria da humildade e a garra do lutador! Bj.
ResponderExcluirAna
Oi, Lú quanto tempo!! Carioca, lembra? Vejo que vc realizou teu sonho! Parabéns!!! Me procura no facebook (Cristiane Regli) ou no Orkut (Cris Regli). Te aguardo. Achei a Teca e a Denise. Quero encontrar todas vocês. Bjs
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