segunda-feira, 28 de março de 2011

Nem tudo se doma





Vestido verde-Brasil, decote em V de babados miúdos, colo alto. Quem a vê não imagina os caminhos que os cabelos a fizeram percorrer.






A mãe adotiva penteava para trás aqueles cabelos com um pente cor-de-rosa cuja visão lhe causava calafrios. O espelho refletia a menina morena clara, olhos amendoados, nariz quase arrebitado que em nada parecia com a mulher negra que a penteava. A mãe lhe repartia o cabelo e puxava, uma para cada lado, duas marias-chiquinhas. Depois as enrolava numa rosca. Em cada puxão, uma pergunta: quem será minha mãe verdadeira, por que meu cabelo é tão ruim? O sofrimento lhe arrancava lágrimas e fios. Ter os cabelos desembaraçados era tentar desvendar mistérios, os mistérios de sua origem.


Buscando pertença no mundo conhecido, a fase das marias-chiquinhas evolui para a do trançado. Blackpower. Finas trancinhas penteadas em curva de nível são enfeitadas com contas coloridas e a cabeça se transforma numa paisagem de pequenas flores que emoldura o rosto delicado. Longas horas frente ao espelho entre as quais Luciane estuda e se compenetra. Sua alma sabe que tem conquistas a realizar.



Na adolescência, o desejo de conhecer a impalpável origem alterna-se em busca e revolta. Numa noite, sem aviso, a mãe se despede para sempre. A moça veste preto da cabeça aos pés, pendura no peito uma cruz e decide que o cabelo será alisado. Se não sou negra, sou branca.



Não bastasse a dureza da vida, os métodos de alisamento passam por instrumentos de tortura.
O resultado pouco consolador mais a saudade doída daquela que a criou dão o tom rebelde daqueles anos. Para compensar tantas faltas, não passa um dia sem namorado. As paixões chegam e partem como ônibus para a escola.

Um dia quis pintar os cabelos, clareá-los. Amanhece no salão, o coração pulando de excitamento. Os cabelos insistem em alguma lição muito difícil de aprender; descobre-se alérgica à tintura. 
Fica praticamente C-A-R-E-C-A. As lágrimas, desta vez, vêm de enxurrada.



Implante, então, ela persiste. Na altura das têmporas, dando a volta na cabeça toda, de centímetro em centímetro, planta chumaços de cabelo natural comprado em casa de confiança. Uma operação de horas, movida à esperança, transforma a cabeça careca numa cabeleira cheia de fios sedosos, levemente cacheados que, porém, não aceitam cafuné. A base do implante apresenta saliências desconfortáveis. Mas não se vê...
Dia de sol, a moça floresce ao balançar os cabelos num samba; dengosa, entra no mar, gingando as ancas. Nas águas salgadas, os cabelos endurecem como crina, cachos espetados indicando os quatro pontos cardeais.
M-E-D-U-S-A.
Amigas ninfas se empenham em desembaraçá-los.
Maldição: a crina tem de ser cortada com tesoura afiada e o implante retirado em outra operação, interminável.

A família se cotiza, compram cabelos verdadeiros.
Verdadeiro é diferente de natural. Aprenda isto. Mãe verdadeira cuida, mãe natural é aquela de quem se herda a natureza.
Escolhe o melhor profissional. Sai do salão com outro implante de fartos cabelos, longos até as costas. De seu, a base, o suporte para aquela maravilha que, desta vez, aceita afagos.
No caminho para a casa, toma conta da cabeça uma coceira insuportável. O espelho, que não sabe mentir, revela a L-E-G-I-Ã-O  D-E   L-Ê-N-D-I-A-S abrigadas em cada centímetro do implante, escondidas em cada fio de cabelo.

     
Cabelos verdadeiros têm defeitos, têm vida, mães também.
Há que retirar o implante, tratar os cabelos todos, os da base, os naturais. Suas mães também lhe haviam sido arrancadas. Os cabelos, por sorte, puderam ser reimplantados.
A moça se conforma em gastar horas para cuidar da cabeleira. Uma entidade à parte, um outro ser acoplado a ela, um encosto, com necessidades particulares. 

Passam os anos.
O tempo de viver tudo o que queria tinha-o de esticar como esticava os fios enrolados do cabelo da infância, puxados em marias-chiquinhas.
Coube tudo nesses puxões. Coube a faculdade, os estágios, os primeiros empregos, os amores; coube um primeiro filho, um segundo. Por eles, a vida deu meia-volta.
Agora ela é a MÃE.



Por natureza tem garra, cuidados, doçura e defeitos; como você e eu.


Cortou os cabelos bem curtos pois, além das próprias, tem hoje 500 crianças a mais com quem se preocupar. E a paixão por elas renasce a cada dia junto com os fios de cabelo. Desde que assumiu a diretoria, a ONG só ganhou em vigor e dinamismo. Muito aprendeu sobre a vida ao lidar com cabelos e mães. Nem tudo se doma. Às vezes temos de aceitar as coisas como são e tirar delas o melhor partido.

Esta é a história de Luciane Vania Ferreira, diretora do
Centro Comunitário e Creche Sinhazinha Meirelles, Rio Pequeno. SP.

sexta-feira, 18 de março de 2011

A foto que ninguém tirou

O rugir das tempestades, os clarões. A terra se rasga em tiras e se vê esfarrapada. As águas descontroladas derrubam milhares, enjaulam famílias em abrigos subterrâneos.
Quando o sol fura as nuvens e o vento bruto as empurra com força, a mãe aconchega ao colo o bebê, que bebe suas lágrimas.
Ressuscita a esperança; é tarefa da infância.

Pois

Na casa de bonecas não há  Parkinson ou tsunamis.
Na casa de bonecas, as ondas são de riso e de porquês; na casa de bonecas, o impossível é possível e a mãe chega sempre a tempo de salvar o filho.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Dois minicontos sem foto

Ehhhh!!!
Tinha tanta roupa de seus tempos de executiva que, passados os anos, ainda podia abrir o armário para tirar do cabide alguma peça que faria a maravilha das amigas.

Ahhhrara...
Quatro dias de chuva presa entre as grades. O sol abre em ouro o quinto dia.
Faceira, a arara se aventura pelo jardim; tropeça na almofada que ali deixaram para espantar o mofo. Arranha-a com esmero.
Trancam-na de volta na gaiola. Nem chega a visitar a árvore predileta.

Biblioteca

Loucos por despertar da brancura das caixas de madeira
Os muitos mundos
Escondidos entre as páginas dos livros










Biblioteca do Centro Comunitário Sinhazinha Meirelles, no Rio Pequeno. Acervo de 4300 livros para todas as faixas etárias. Prontinho! Ufa!

sábado, 5 de março de 2011

Espanto


  Março de 1963. Rio de Janeiro. 40°
Steve Marc Christiansen, 21 anos, aporta da Suíça para fixar residência no Brasil. O rosto afogueado de calor, o suor pinga da testa. Apresenta-se ao oficial de imigração. Antunes, sentado à escrivaninha de madeira escura, é um negro forte do tipo agigantado. O suor faz brilhar as duas rugas de sua testa. Escorre pelas têmporas. Do inútil ventilador de parede escorre um fio desencapado na ponta.
Antunes não levanta os olhos, estende a mão, pede o passaporte. Steve o entrega grampeado a um pequeno maço de documentos. O homem estranha. Arranca o grampo, procura pela folha precisa. Lê o nome do pai, o nome da mãe, o do filho. Não conferem. Aumenta o estranhamento. Com o olhar, pede explicação. A resposta vem imediata, em francês, acrescida de demonstração nos documentos anexos com carimbo oficial do Consulado brasileiro em Genebra. Antunes não entende francês. O rapaz repete a explicação em inglês, o suor que lhe cai da testa espalha-se pelas mãos e axilas como se alguém tivesse aberto as comportas de uma represa.
Os documentos apresentados atestam que a criança de 9 anos, Steve Marc Fayard Tofler Brosse, solicitou a mudança de seu nome de batismo com sobrenome paterno para o mesmo pré-nome com sobrenome exclusivamente materno. Se o pai saíra de sua vida tão prematuramente não permitindo sequer que restassem os vestígios da lembrança de seu rosto, seu nome também sairia. Foi o desejo do menino, consistente e insistente, que a mãe houve por bem respeitar e conceder. Fato inédito naqueles tempos a ponto de merecer parecer do Presidente da Confederação Suíça. Tudo registrado nos órgãos oficiais.
Pois esta papelada anexa ao passaporte era coisa demais para o Antunes. Antunes gostava das coisas simples.
Olhou para os olhos azuis do rapaz que suava à sua frente, olhou para o papel que tinha de preencher. Fixou o olhar na palavra Filiação. Uma luz brilhou em sua mente: no espaço reservado aos nomes do pai e da mãe riscou forte dois traços horizontais. Sorriu.
- Muito complicado, ele explicou. Isto tudo é muito complicado! Agora o problema está resolvido!
O indivíduo à sua frente era filho de ninguém.
O estranhamento de Antunes deu lugar ao espanto de Steve. Seu rosto todo é que era agora um ponto de interrogação.
De repente, como se viesse num raio uma mensagem enviada pelos anjos, o moço entendeu: Neste país acontecem coisas EXTRAORDINÁRIAS. Deste momento em diante, no jogo da vida, conto única e exclusivamente com meu próprio taco.