sexta-feira, 27 de abril de 2012

Ainda a Raiva

Enquanto Antenor se recuperava da operação, o tempo foi passando, os netos crescendo por ali mesmo. Ninguém, a não ser ele, poderia levar avante a ideia de pedir a casinha de aluguel que tinha na cidade, pra botar as filhas. E ele não teve energia. Dona Ester e seu Leandro fingiam que não viam e procuravam se aborrecer o menos possível com a choradeira das crianças. Mas se aborreciam. E iam ficando com raiva também. 

Nasceu o segundo filho da Lidinha, outro menino. O mais velho já começava a andar e era agarrado no avô. Onde ia o Antenor, o menino queria ir e, muitas vezes, ia mesmo, escapando dos olhares dos adultos. Naquele dia, encontraram-no na cerca, quase fora do sítio, um menininho que nem dois anos tinha! Que peste! – reclamaram as mulheres. - Que moleque! - exclamou o avô, com orgulho.

Antenor, de repente, começou a se lembrar de quando chegara ao sítio para trabalhar. Vinha do Paraná, moço ainda, já casado e pai de meninas pequenas. Viu as duas correndo debaixo das mangueiras como via agora o neto. Narizes sujos, pés descalços, adoravam dar risada. Como a mãe. Chegaram cheios de esperança. Foi o dono do empório que lhes falou sobre Dona Ester, uma mulher moça da cidade que estava levando o sítio, praticamente sozinha. Precisava demais de um caseiro, de uma família que morasse lá, que entendesse de lavoura, de horta, de galinhas, que fosse gente honesta e trabalhadora. Pois eles eram tudo isto. Ele conhecia os segredos da lavoura, a mulher era trabalhadeira e eles precisavam de um lugar para morar e criar as filhas. Na primeira conversa com dona Ester percebeu logo que era uma mulher decidida e de bom coração, tiveram uma simpatia simultânea os três. As meninas se enroscavam nas pernas da mãe e não respondiam às brincadeiras de dona Ester, nem olhavam para ela. Engraçado – pensou Antenor – desde o começo não deu liga. Ele se lembrava bem que, no início, Rosa fazia tudo para que as meninas fossem simpáticas com a patroa mas elas nunca quiseram mais do que o contato indispensável. Dona Ester também não insistiu; contanto que não atrapalhassem o trabalho dos pais, estava tudo bem.

Rosa abraçava com força o menino que podia ter sumido cerca afora, escondia o sorriso com a  cara enterrada na cabeça dele, mas os olhos choravam e queria não pensar sobre os problemas que estavam todos exatamente no mesmo lugar. As filhas continuavam sem trabalho, sem casa, vivendo às custas deles; agora eram três crianças mais as mães: cinco bocas para comer, vestir, educar, dar remédio, tudo. Raiva.


imagem da internet

Pois não é que um dia, o segundo filho não tinha nem seis meses e Lidinha engravida pela terceira vez? Rosa percebeu, quis não acreditar, nem falou com Antenor, escondeu o pensamento até de si mesma. Porém, deu de ver fantasma, de escutar vozes, discutia com o invisível. Notaram que ela andava meio esquisita, mas também, com tanto problema, é natural – pensavam todos.

Uma tarde, perto das quatro horas, pegou uma faca, entrou na casa de Dona Ester e a ameaçou. Falava como se fosse outra pessoa, era difícil de entender, a fala enrolada, a voz muito grossa. Mas a faca em sua mão apontava a patroa.

Dona Ester, o coração aos pulos, as mãos molhadas, com um controle vindo de não se sabe onde, conseguiu mostrar-se calma, conversou com Rosa, chamou-a a si. Seu Leandro, que escutara um zumzumzum lá da varanda, entrou por detrás de Rosa, chamou-a pelo nome e pediu um suco, voz mais serena, impossível. Daqueles seus, hein, Rosa, um bem gostoso que o calor está demais. Ela disse sim senhor e entregou-lhe a faca. Ficaram D. Ester e seu Leandro a se olharem boquiabertos. Abanavam-se. Tinham de tomar alguma providência. Precisavam pensar.


continua na próxima semana

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Rosa e Antenor - A Raiva

Desde que as filhas ficaram grávidas, muito meninas, a mãe começou a adoecer. As garotas tiveram seus filhos morando em casa dos pais. A patroa não gostara nada daquilo. Primeiro porque as meninas nunca haviam se empenhado em aprender grande coisa; mal iam à escola e pouco ajudavam os pais. Agora, cada uma com um filho nos braços, mais precisavam de ajuda do que podiam ajudar em alguma coisa. Dona Ester ficou possessa quando descobriu que Lidinha já tinha posto barriga, de novo. Chamou a caseira, o caseiro, disse o que pensava e avisou: “Não quero mais estas meninas aqui em casa e também não quero homem nenhum entrando no sítio, pra falar com elas. Se escolheram esta vida, podem vivê-la. Onde quiserem. Aqui, não!”
Os dois balançaram a cabeça, até concordaram com a patroa.
Entretanto.
Coração de mãe principiou apertar. Deu de falar sozinha, a Rosa. Ia para a horta e ali despejava suas lágrimas, regando as folhas de escarola, de alface, os pés de berinjela. Para onde iriam as meninas? Como fazer com os netos que cresciam? Do que elas iam viver? Os pais das crianças não iam arcar com despesa nenhuma, alegavam desemprego. Rosa não tinha resposta para nada, não tinha solução. As filhas sempre foram meio bobas, nunca souberam aproveitar as oportunidades que tiveram para aprender uma profissão. Nunca foram atrás de nada. “A não ser de homem!” – gritou ela, furiosa. “Nasceram para ser putas”. Será que existe isto? – pensava Rosa soluçando entre os ramos de tomate. 
Dona Ester e Seu Leandro também se preocupavam mas diziam que não tinham nada a ver com aquilo. Seus empregados eram os caseiros, não suas filhas e netos. “Pagamos todos os direitos deles! Já basta!”
Antenor, o marido de Rosa, era um homem trabalhador, muito responsável, religioso. Só não foi capaz de segurar as filhas. E agora?
Eles tinham uma casinha na cidade, estava alugada. O dinheiro do aluguel foi sempre uma boa ajuda. Teria que pedir a casa e colocar as filhas lá dentro. Perderia dinheiro, gastaria ainda mais.
Ele foi ficando perturbado. Mas não se dava conta do sentimento que brotava em seu peito. Não era certo ter raiva. Não era coisa de cristão. Um dia surgiu uma dor no estômago, forte demais. Uma pontada, um puxão. Não teve força para gritar. Rosa vinha subindo da horta quando o viu desabado no chão do galinheiro, as angolas cacarejando indiferentes. Largou as verduras em qualquer lugar, correu para atender o marido. Tinha raiva dele também, misturada com amor, com desencanto, e tudo se mesclava no abraço que lhe deu, levantando-o sem pensar e carregando-o até a cama.  As filhas não estavam, tinham levado as crianças para vacinar. Os patrões, na cidade. Antenor não falava, respirava ofegante. Ela ligou para a patroa que voltou para o sítio num instante e já com uma ambulância. Antenor foi atendido a tempo, tinha era uma úlcera que precisou ser operada às pressas. Raiva.

continua na próxima semana
foto da internet

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Avô e netos


Joel chorou porque não cabia no carro que levou os primos e a tia para a estação.
- Eu também não vou – acalmava-lhe a mãe – logo o vovô está de volta, não chore, Joel, vem, vamos dar comida pros cachorros.  Ele chorava baixinho, as lágrimas escorriam pelo rosto e se misturavam com a poeira.  
Quando o avô voltou da estação, encontrou Joel esperando na porteira. O avô vinha triste com a partida do outro neto, o preferido. Reparou nos cabelos crespos de Joel. Tão compridos, pareciam peruca. 
- Joel, vamos  no barbeiro? Vamos cortar este cabelo?
- Eu?! Nunca fui no barbeiro...
Antenor abriu a porta do carro e o menino entrou. Sentou no banco da frente, quietinho, nem olhou para o avô. O barbeiro ficava na vila ali perto, tiveram de dar meia volta, fazer manobra na estradinha de terra, Joel prestava muita atenção nas mãos do avô mexendo na alavanca do câmbio, nos pés e nos pedais. Não ousava levantar os olhos para olhar o velho, não perguntou sobre os primos que viajaram e nem o homem contou.
A cadeira do barbeiro era alta. Joel ficou afundado no assento, a cara quase batendo na mesinha de apoio sob o espelho. O barbeiro não era homem de cortar cabelo de criança, mas Antenor insistiu, por favor, Toninho, olha o cabelo deste moleque, tá parecendo arame farpado.
- Leva ele no meu filho, Antenor, ele tem um salão na cidade, lá ele corta cabelo de criança e tem uma cadeira que  parece um carro. Tem até televisão.
Ao ouvir isto, Joel lançou um olhar para o avô e puxou a manga da camisa dele com tanto jeito...
O velho agarrou o garotinho e o pôs de volta no carro, desta vez no banco de trás.
-Fica bem quietinho e se segura que agora a gente vai mais longe.
Joel estava encantado. Na cadeira do barbeiro da cidade, sentiu-se um rei sentado naquele carro vermelho. Levantou o queixo, olhou no espelho, deu um sorriso orgulhoso. Seus cachos claros rolavam para o chão; ele via apenas o volante e se imaginava guiando como acabara de ver o avô, mudando as marchas, apertando os pedais, batendo buzina. Quando o barbeiro falou está pronto ele levou um susto.
-Ah, já? Sair do carro?
Tiraram-no de lá e o puseram no chão. Num instante estava, de novo, sentado no banco de trás do carro do avô, as mãos na direção imaginária, a boca fazendo barulho de motor. Antenor percebeu a paixão que se iniciava e parou numa banca de jornal. Comprou um carrinho de brinquedo. Foi o primeiro presente que ele deu a este neto. Chegaram ao sítio. Muito diferentes.